A história que vou lhes contar, é como um trauma mal curado, daqueles que a gente não quer falar sobre, mas precisa. Do tipo que escondemos dentro de um saco, colocamos em um baú e enterramos. É o tipo de história que faz a gente engolir em seco e querer chorar ao mesmo tempo. Então me vem um questionamento: preciso falar para me curar ou consigo falar, pois já me curei? Na dúvida, eu escrevo.
Estava eu no universo maternidade pública, há pelo menos 5 dias, o que para uma mãe de primeira viagem, sozinha e sem nenhum conhecido por perto, equivalem a exatos duzentos anos. Eu estava em outro estado, longe da família e dos amigos, mas por sorte eu tinha meu companheiro e a minha sogra ao meu lado. Porém, não foi permitido que depois do terceiro dia de internação, eles ficassem comigo, pois o meu filho iria precisar tomar banho de luz, e na sala em que ele estaria, não poderia ficar mais ninguém além da mãe.
Fiquei nessa sala com o meu filho, durante os primeiros dias sozinha, não havia nenhuma outra mãe. Era simplesmente aterrorizante. Um alento eram os horários de visita, em que meu companheiro vinha para eu poder tomar um banho, e ficar de novo com aparência de gente viva. Porém, lá pelo quinto dia, apareceu uma colega de quarto. Finalmente uma outra mãe. A princípio, fiquei tão aliviada que quase dei um abraço nela. Mas logo fui notando como éramos diferentes, e aquilo a tornava muito distante.
Ela era segura de si e eu parecia um bicho assustado. Ela já estava na segunda gravidez e havia tido uma menina, enquanto eu estava sendo mãe pela primeira vez e tive um menino. Ela tinha os seios fartos e muito cheios de leite, tanto que fora fazer doações para o banco de leite da maternidade. Eu também tinha bastante leite, mas ele não saia a princípio, estava endurecendo dentro do meu peito, e eu precisava ficar massageando sempre. Enquanto a minha nova colega de quarto aparentava tranquilidade e calma, eu estava a ponto de ter uma crise nervosa.
Sim, essas diferenças nos afastavam porque eu não sentia que eu poderia contar a ela que eu já estava sem dormir há mais de 72 horas, que eu estava com muita tontura, zumbido no ouvido e todos os sintomas de quem não tem dormido. Não sentia que eu poderia dizer-lhe tudo que havia acontecido antes, que eu estava cansada demais e queria ir para casa. Como eu falaria sobre estas coisas, se ela parecia feliz, forte, determinada?!
Eu parecia fraca diante da outra mãe, me sentia ridícula. A mulher andava pelo quarto como se não tivesse parido. E para completar a lista de diferenças, ela teve parto normal e eu passei por uma cesariana.
Não lembro o nome dessa outra mãe, mas ela estava lá e já era muito para mim. Não tínhamos quase nada em comum, mas fomos conversando. Me contou coisas que havia presenciado na maternidade desde que havia chegado, me pedia para olhar a filhinha dela, enquanto ela ia comer, e eu pedia o mesmo a ela. Ficávamos conversando sobre a eficácia do banho de luz e outras coisas. Ela com certeza era mais jovem do que eu, mas aparentava carregar o fardo e a experiência de quem já viveu mil vidas.
E aqui, finalmente, descrevo o motivo do trauma. Pode parecer bobo e que eu causei um suspense desnecessário, porém a bofetada abafada que recebi ressoa até hoje na minha cabeça. Imagine que antes de sair de casa, eu havia separado uma sacola pequena de roupas para doação ou para jogar fora, roupas essas que já estavam bem gastas e outras que não me serviam mais. Meu marido viria no horário de visitas, e traria um vestido que eu havia pedido, já que eu não tinha levado roupas o suficiente para oito dias.
Quando ele chegou no hospital, abri a sacola e lá estava um dos vestidos que não me servia mais, um dos que eu ia jogar fora. Ele não sabia que a sacola separada, era de roupas que eu já ia me desfazer. Fiquei muito chateada com ele. Coitado, não teve culpa, ele estava me apoiando em tudo que podia, inclusive ficou comigo durante a cirurgia segurando a minha mão, estava lá para mim, sempre. Mas eu não estava bem. Fui grosseira com ele. Joguei o vestido na lixeira. Ele foi embora triste, dizendo que traria outro em breve. E adivinhem quem assistia a tudo? Exatamente, a Outra mãe. Falei para ela que “aquela droga de vestido” já não me servia. Como meu marido pôde ser tão desatento? Ela ouvia com um ar de quem achava engraçado a minha revolta. Então, ela levantou de onde estava, pegou o vestido da lixeira e disse: “posso pegar pra mim? Vai dar certinho na minha outra filha, é só lavar”. Eu emudeci na hora. Ela foi logo para a pia do banheiro, lavou o vestido e deixou secando em um canto do quarto perto da janela.
Eu quis chorar desesperadamente. E não sei exatamente porque. Mas ainda lembro da sensação. Fiquei com o estômago revirado, a garganta não passava ar. Ela falava, mas eu não ouvia, pensava apenas em me controlar para não me derramar em lágrimas ali na frente dela. Em meio a minha tentativa de me recompor, chega o pai da filha dela na porta. O homem não chegou a entrar para ver a criança, a Outra mãe foi até ele e perguntou pelas fraldas, ele não respondeu, apenas jogou o pacote no chão e foi embora. Ela se abaixou, pegou o pacote de fraldas e foi arrumar dentro das bolsas. Ela disse algo como: “esse daí é o pai dela, ele é assim mesmo. Tá chateado que ainda tô no hospital, sendo que tive parto normal, como se eu tivesse culpa”. Em seguida, saiu para doar mais leite. Assim que ela saiu eu desabei. Chorei tanto que acabei dormindo na poltrona da maternidade. Dormi sentada. Finalmente dormi.
Quando acordei, não bastassem as comparações loucas feitas pela minha mente insegura, eu também comecei a me julgar. Como eu poderia ter jogado o vestido? Se aquela mulher precisava? Como eu poderia ter sido grosseira com o meu marido, se o pai da filha daquela mulher foi horrível com ela? Como eu poderia me acolher, se eu mesma me julgava? Foi aí que senti que a bofetada não era julgamento, e sim aprendizado. Aprender dói, e lembrar que já sabia e havia se esquecido, dói mais ainda.
A Outra mãe foi embora no dia seguinte, sua filha havia melhorado. Nós comemoramos felizes. Antes de sair, ela correu para doar mais leite. Quando voltou, tirou o vestido da janela e o guardou na mochila. Se despediu me desejando boa sorte. Ela sumiu. Nunca mais a vi na vida, e se a visse com certeza eu não a reconheceria. Mas eu lembro do vestido, tenho fotos com ele. Acho que no fim, estou cicatrizando meu trauma, pois ainda me assustam as outras mães. Sim, ela me dava medo. Medo de que eu não conseguisse ser forte como ela. Curiosamente, talvez, ela também me visse como a Outra mãe. Afinal eu era mesmo!
Fiquei sozinha novamente com o meu filho, todavia agora eu já não era a mesma. Fui forjada muito antes, pela minha própria mãe, mas ali na maternidade, eu me lembrei disso. Me exponho a julgamentos ao contar esta história, contei apenas para poucas pessoas, inclusive para o meu marido, depois de lhe pedir desculpas. Mas ao contar e me expor, me curo, me fortaleço e espero fortalecer outras mães também.
Por Laureana Santos Feitosa – @nossavidaatipica23
Revisão: Angelica Filha