Parte de mim morreu quando minha filha disse que queria me matar. Mais precisamente, a parte que era mãe dela. Que se preocupava com o bem-estar dela vinte e quatro horas por dia desde que ela havia nascido, mesmo enquanto eu fazia outras coisas. Que guardava lembranças colecionadas ao longo dos anos. A parte de mim que sentia por ela um amor de mãe. Porque meu amor por ela morreu junto dessa parte de mim. E a morte é definitiva, mesmo a morte de sentimentos.
Uma a uma, as lembranças de nós duas juntas foram desbotando, como retratos antigos, em preto e branco, de pessoas que não existem mais. O companheirismo, os programas nos finais de semana, nossa correria diária para a chegada dela no horário da escola; tudo isso parecia ter acontecido numa encarnação anterior. Numa vida que não era mais a minha. Nossas fotos espalhadas pela casa não só deixaram de fazer sentido, mas passaram a me incomodar. Viraram lembretes da minha incapacidade de continuar amando minha filha, do meu fracasso como mãe.
Sei que essa falta de amor materno fará com que eu seja eternamente julgada por todos. Como se cada um tivesse a certeza de ser capaz de amar uma filha que diz querer te matar. O mito do amor incondicional materno. Para muitos, meu amor por ela só poderia morrer se e quando ela efetivamente me matasse. Para outros, só seria aceitável que eu deixasse de amá-la se e quando ela efetivamente tentasse me matar, tendo sucesso ou não.
Há também permissões para deixar de amar condicionadas ao grau de sucesso ou fracasso da tentativa dela em me matar. O fato é que cada um tem um limite sobre o que poderia fazer o amor por um filho deixar de existir, nem que esse limite seja a própria morte da mãe. No meu caso, acabo de descobrir que o meu limite é anterior à minha morte; meu limite é quando minha filha anuncia querer me matar. Não acho que meu limite seja melhor nem pior do que o de outras pessoas, mas a realidade me provou que não consigo ir além desse limite que se impôs.
Minhas responsabilidades como mãe não se encerram, apesar da minha motivação para desempenhar esse papel com ela não existir mais. Seguirei cumprindo com minhas obrigações, enquanto evito ao máximo qualquer tipo de contato com ela. Reconheço também minha parcela de responsabilidade por, de alguma forma, ter deixado minha filha se tornar esse monstro. Uma boa mãe teria conseguido fazer alguma coisa para evitar. Alguma coisa que sequer consigo imaginar. Algo que, se eu voltasse no tempo, novamente deixaria de fazer.
Mas a realidade é como é, e não como eu gostaria que fosse. A realidade é que não fui capaz de impedir minha filha de se tornar um monstro, que diz querer me matar, tampouco sou capaz de seguir amando esse ser que enxergo monstruoso.
Texto revisado por Luiza Gandini.