Eu ouvia o som dos carros. A rua estava movimentada e o sol a pino. Tudo parecia estar onde deveria estar. Eu estava na calçada, em frente ao laboratório de análises clínicas e com o exame em mãos. Na ansiedade, que sempre foi uma constante na minha vida, abri-o ainda do lado de fora do carro.
Corri os olhos e não conseguia entender os marcadores. Procurei o laudo: oligospermia grave. Peguei o celular e entrei no Google. Digitei. “Oligospermia grave é uma alteração seminal caracterizada pela baixa produção de espermatozoide. Motivo de infertilidade masculina.” Recorri a Deus, olhei para o céu e mentalizei em meio a uma explosão de lágrimas: “Eu teria sido uma excelente mãe. Teríamos sido excelentes pais.”
Como se não bastasse o fator masculino, eu viria a descobrir que minha reserva ovariana era baixa e meus hormônios estavam desregulados, em outras palavras, eu tinha também um grau de infertilidade considerável.
Se posso falar de um “pelo menos”, pelo menos havia uma explicação para aquele quase 1 ano e meio tentando engravidar. Acabara-se a rotina de monitorar a ovulação, relações sexuais programadas, testes de gravidez negativos, estresse, sensações fictícias de mamas inchadas e enjoos. Ser tentante é uma experiência cruel. A cada resultado positivo de conhecidas, a cada bebê que você avista na rua, pergunta-se quando chegará a sua vez. No nosso caso, ela não chegaria.
Ao longo dos meus 35 anos, eu sempre escutei que um bebê interrompe os sonhos da mulher. Não por culpa da criança, mas de uma sociedade que dá o mínimo de suporte à mãe. Atribula a mulher em rotinas exaustivas e jornadas múltiplas de trabalho. Uma sociedade que não condena um genitor que vai embora sem cumprir com suas responsabilidades, mas que aponta todos os dedos para a maternidade solo, esmagando, sem dó, essa mulher que tenta sobreviver. Bastavam-se as minhas experiências de vida em uma família de mono parentalidade feminina. Não desejava aquilo para mim e muito menos para o meu bebê.
Então estudei, me formei, fiz pós-graduação, fui a congressos e tive o privilégio de conhecer alguém bacana, sensível e que me apoiava emocional e profissionalmente. Casamo-nos, depois de quase 7 anos de relacionamento, e tudo parecia perfeito até aquele diagnóstico. De um lado eu tinha meu diploma de doutorado, em uma das universidades mais prestigiosas do Brasil e do outro, um diagnóstico de infertilidade. Escutava uma estrondosa gargalhada da vida, banguela, diga-se de passagem, que me sentenciava a uma vida pessoal medíocre perto da profissional.
Um sentimento de luto tomou conta de mim. O peso do velho discurso caiu sobre os meus ombros. “Não deveria ter estudado tanto. Agora sou velha demais. Meu marido não seria pai.” Não há saída, o excesso de cobrança vem no maternar e no não maternar.
Pensamos em adoção. Algo que sempre cogitamos, porém, diante da impossibilidade de gestar, eu sentia que era a segunda opção. Nenhuma criança merece ser a segunda opção. Uma adoção não é um prêmio de consolação, daqueles que a gente pensa que nem fazia questão, mas que aceita com um sorriso amarelo. É preciso estar inteiro e naquele momento meu coração estava quebrado de maneira irreparável, com minha alma habitando um corpo mórbido. Eu me sentia seca, árida, como se nada pudesse penetrar as minhas entranhas.
O mais contraditório é que eu sentia a maternidade em mim. Eu era uma mãe sem filho e essa pequena fagulha fez com que eu saísse da tristeza inerte, restando-me aquilo que sempre fiz. Estudar. Estudar as possibilidades.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 1 em cada 6 pessoas no mundo sofre de infertilidade, independente da renda. Uma taxa boa considerando os poucos casos conhecidos. O tabu faz com que a infertilidade seja como uma seita secreta, você apenas descobre quem sofre quando está na mesma situação, pois há vergonha, medo, julgamento e uma profunda tristeza.
O termo “Fertilização in vitro” passou a ser rotineiro em casa. Iniciamos a jornada: coleta de sangue, ultrassom transvaginal, sangue, sangue, dieta, frutas amarelas, vitaminas, inhame, chá de inhame, sangue, transvaginal. Corta glúten, açúcar, lactose e bisfenol. Medita, faz exercício físico, yoga, respira, respira. Sangue, transvaginal, ressonância, sangue, acupuntura, hormônios, injeção, reza, respira. Espera. Sopa de tutano, dieta, sangue, transvaginal, biópsia, análise genética, teste ERA, reza e respira… respira. Por sorte, ao final de todo processo, ainda sobrava ternura e esperança.
Costumo dizer que gestei meu filho em sonho durante muito tempo e isso bastou para eu continuar em frente. Fez-me mãe antes mesmo de existir e mudou a minha perspectiva, me fez resiliente, me esvaiu das minhas vaidades e transformou as minhas crenças. Assim como a flor de Mandacaru, símbolo de fé e resistência nordestina, meu pequeno alagoano germinou em solo árido e floresceu. E então era a minha vez de gargalhar, um riso alto e com a boca cheia de dentes, a chegada do meu amado filho.
Por Natália de Almeida Rodrigues – @almeida.na_