Em vídeo produzido pela Fundação Mehuer (apoio à investigação e tratamento das doenças raras), vemos, com bastante delicadeza e sensibilidade, os preparativos de um casal para a chegada de seu filho. Fazem muitos planos para a chegada à “praia”, escolhem possibilidades de nomes, preparam a mala e, no caminho ao “grande dia”, são direcionados para as montanhas, enquanto outros carros se dirigem à praia.
Penso que a descrição para a maternidade atípica seja assim: desejamos o melhor para nossos filhos, fazemos planos, idealizamos quem eles podem ser, para que, em algum momento da vida, seja logo no parto ou tempos depois, percebamos que algo está diferente em nossas vidas.
A neurociência explica como hormônios chamados “do pós-parto” influenciam e dirigem os comportamentos maternos. A ocitocina, importante hormônio atuante em níveis aumentados durante o período gestacional, desempenha importante papel na relação entre mãe e filho, sendo liberada pela glândula pituitária em momentos de proximidade afetiva e vinculação emocional.
Mônica Tarantino (2020) coloca que, na “dança hormonal”, estrógeno e progesterona diminuem bastante no pós-parto, e, com tantas alterações acontecendo no corpo da mãe, “não é raro não se reconhecer e entrar em desespero”.
Lidar com tantas transformações e, ao mesmo tempo, cuidar de um bebê é um dos maiores desafios que considero que passamos. Quando somamos a isso o fato de que nosso caminho será para a montanha, em vez da praia, a situação fica delicada.
Períodos de cansaço permanente, pois, à medida que o filho cresce, novos cenários vão demandando dos familiares criatividade e luta para, muitas das vezes, terem o básico, como acesso a tratamentos terapêuticos necessários ou o acesso e a permanência de seu filho na escola. Parece que as situações se tornam mais complexas, porque nossos filhos são diferentes e precisam do que a “grande maioria” não precisa.
A realidade de que a tão almejada autonomia pode chegar, demandando menos ensinos, menos cuidados e menos supervisão da mãe para com o filho, pode ser utopia. Afinal, nossos objetivos para eles podem não ser mais uma carreira de sucesso, com destaque em conhecimento de alguma área de estudo, mas pode simplesmente ser investimento e desejo de uma vida adulta com independência e felicidade.
Como mãe de uma adolescente de 16 anos com deficiência intelectual e autismo, posso afirmar:
- Cuidar e investir em mim (às vezes, mais em mim), na proporção igual àquela que faço a ela, me trouxe a percepção de que sou uma pessoa, com desejos, com vida e aspirações que me movimentam, e sinto ser melhor para minha filha. Penso que, dos meus 46 anos, quase 30 foram sem ela, e por que hoje teria que ser diferente?
- Ter espaços de escuta, como uma psicoterapia, uma roda de conversa de mães com filhos com transtornos do neurodesenvolvimento (ou outra deficiência/patologia), um aconselhamento e até uma boa conversa com uma amiga faz total diferença, porque a maternidade é apenas uma parte nossa, não tudo de quem somos.
- Passar pela experiência do luto, por mais dolorosa que seja, é necessária para se apaziguar psicologicamente e afastar as ideias que insistem em desqualificar nossa história (a minha ideia mais dolorosa era de que não havia feito minha filha direito, rsrs). Cada processo é único e cada uma de nós leva um tempo emocional para percorrer esse caminho!
- Apaziguar-se com sua história e com a história do seu filho é condição para aspirações maiores. Eu já tive épocas de gastar horas na internet em busca de tratamentos para minha filha ou trocar muito de profissionais na expectativa de que o manejo pudesse ser diferente e os ganhos maiores. A questão é que há aspectos nos quais não podemos interferir diretamente, como a maturação neurológica das crianças e adolescentes. Podemos (e devemos!) estimular.
- Compartilhar o cuidado com uma rede de apoio e dividir as responsabilidades (se puder) pode diminuir o cansaço permanente que muitas de nós sentimos.
- E uma das lições mais produtivas que aprendi: estar comigo, ter espaços de prazer, cultivar relacionamentos saudáveis e fazer muito o que gosto, sempre que necessário, porque sou tão importante quanto àqueles que amo.
Cada trajetória é muito singular. Gosto de estar com meus pares (outras mães atípicas) para ouvir, de vez em quando, que minha realidade é comum a outras pessoas, que minhas dores podem ser parecidas com as de meus semelhantes, mas também gosto de estar com pessoas que não têm a condição que tenho. Esse foi o equilíbrio para a minha saúde mental que construo. O seu ponto de equilíbrio pode ser totalmente diferente do meu, e o importante é você construí-lo.
Afinal, “se você passa a vida se queixando porque nunca chegou à praia, pode ser que nunca tenha a liberdade para poder desfrutar tudo de especial que tem a montanha”.
Gisele Mestieri – Psicóloga- CRP 06/62562