“Gael, se acontecer alguma coisa, liga pro tio Gabriel ou pra pessoa mais próxima”. Foi assim que eduquei meu filho, de 10 anos, para agir caso eu, de 30, sofresse alguma intercorrência – o que é mais comum do que eu gostaria que fosse.
Explico: tenho epilepsia tônico-clônica juvenil, uma doença que me faz, entre outras coisas, ter convulsões. Isso significa ficar ausente por um período que pode variar de 10 segundos a 3, 4 minutos (o máximo de tempo que já fiquei em crise), totalmente vulnerável e sem controlar meus movimentos, podendo me ferir ou machucar.
Sendo mãe solo por muito tempo, era inviável não ensinar o meu filho mais velho, Gael, a agir em episódios de crise. Virar-me de lado, proteger minha cabeça, esperar a crise passar. Se eu demorar muito para “voltar”, ligar para alguém. Caso a Pilar – minha filha mais nova, de 1 ano e 7 meses – esteja comigo, cuidar dela primeiro para que ela não fique sozinha. Com o tempo, ele começou a pegar o jeito, seguindo o passo-a-passo direitinho.
O problema é que orientar o Gael para que eu não me machucasse fisicamente me machucou ainda mais. Depositar em uma criança a responsabilidade de cuidar de mim, quando era eu quem deveria cuidar dela, mesmo que por poucos minutos… Nossa, isso acaba comigo. Em toda crise, quando ele age de forma impecável prestando socorro, o parabenizo e me culpo ao mesmo tempo. Por ele ser tão novo e já ter que lidar com um cuidado que, eu sei, será eterno – pelo menos até ele sair de casa.
A epilepsia sempre me causou vergonha – e é algo que tenho lutado constantemente há anos, escrevendo ou fazendo relatos sobre a doença, para desmistificar muita coisa. Ainda há quem acredite que puxar a minha língua vai resolver alguma coisa, ou me banhar com água benta, ou impedir meus movimentos de qualquer forma. Ainda estou em processo de aceitação, mas confesso que mais de 10 anos depois do diagnóstico, ela ainda não chegou. E depois de minha última crise, acho que ela ainda vai demorar para chegar.
Eu estava na UPA com Gael esperando um atendimento para ele – que estava com febre e um roxo imenso no joelho. Nas cadeiras de espera, senti a aura (nome dado à esquisita sensação precedente à crise que alguns epilépticos têm) e pedi que ele saísse correndo (mancando!) e avisasse meu namorado, que estava do lado de fora. Resultado: também virei paciente e fiquei um bom tempo recebendo atendimento e longe do meu filho. Se não houvesse alguém nos acompanhando, o Gael teria ficado sozinho.
Não sei bem como terminar essa coluna. Gostaria de dizer que é isso aí: nós, mães, precisamos abraçar nossas vulnerabilidades e não dar espaço para que a culpa se instale, sejamos gentis com nós mesmas, não é nossa culpa. Mas ainda não consigo dizer isso de forma sincera. Ainda dói a vulnerabilidade. Ainda sinto culpa.
Escrevo para que você, mãe epiléptica como eu, se sinta abraçada e leia que não está sozinha. A culpa ainda não me largou, a vulnerabilidade ainda me machuca, mas um novo dia vai raiar – pra mim e pra você. Um dia, ela irá embora e seremos apenas mães.