Acabo de ler Antígona, criação de Sófocles, dramaturgo da Antiguidade clássica. Como bem sabem, Antígona é a heroína da desobediência. Filha de Jocasta e Édipo, o rei. Antígona, como o leitor deve se lembrar, desobedece à lei de Creonte, o Rei tirano de Tebas.
Por meio dessa lei, Creonte proíbe que rituais fúnebres, importantes para a paz na vida após a morte, sejam oferecidos a Polínices, irmão de Antígona. A pena para quem o tentasse: a morte.
A despeito disso, Antígona decide enterrar Polínices e pede ajuda à irmã, Ismênia. Esta se nega. Então, com as próprias mãos e sozinha, Antígona presta ao irmão os rituais fúnebres, versa sobre ele a terra.
Antígona, é claro, morre. Morre também Hemon, seu noivo e filho de Creonte, que, por raiva do pai, enterra no peito uma espada de guarda dupla. Em resposta a isso, também se golpeou com uma lâmina Eurídice, esposa de Creonte e mãe de Hemon.
Essa é Antígona, a mulher que não tem medo de falar, tantas e muitas vezes apresentada como referência de insubordinação. Nós a conhecemos, já a vimos por aí. São inúmeras: Antígona, Malala, Marielle… Insubordinadas, insolentes diante do rei. Antígona, ao custo da própria vida, resiste. Sustenta “um desejo puro e inegociável”, diriam alguns.
Mas, pronto! Quero falar sobre Ismênia, a irmã. Já logo me antecipo dizendo que não se trata de uma tese, por isso não tenho que defender o que escrevo. Isto é uma crônica. Sobre Ismênia recai uma maldição, sobre ela e toda a descendência de Laio. A maldição se realiza com todos – ou quase todos. Incluo, por minha conta, Hemon, Eurídice e, porque não, Creonte, que, por fim, abandona o trono.
A irmã de Antígona, e aqui me repito, é incitada a participar do grande ato de desobediência, mas se nega. Ela se nega a participar do enterro do irmão Polínices. Recomenda a Antígona que também não o faça.
Por conta dessa negativa, as mais diferentes interpretações desta obra sugerem que Ismênia é submissa, silenciada.
Pois eu digo que não! E, mais uma vez, para lembrar o leitor: isso é uma crônica. Ismênia sabe sobre a maldição que recai sobre ela e sobre Antígona: a maldição de Laio.
Laio morre pelas mãos do filho Édipo que se torna rei em seu lugar e se casa com a viúva Jocasta, sua própria mãe. Este, por sua vez, fura os próprios olhos.
A mãe e esposa, Jocasta, se enforca. Dois dos filhos de Édipo e Jocasta, Eteócles e Polínices, em uma guerra um contra o outro, se matam. Ismênia, nesse momento, prevê, como uma adivinha, o próprio fim caso acompanhasse Antígona na desobediência a Creonte. Por isso, Ismênia se nega: escolhe viver. Ismênia se silencia não por medo de falar. Ela se silencia para desobedecer à maldição que atravessa seu destino.
O leitor não está preparado para saber o que vou dizer agora: Ismênia não morre, não foge em exílio ou fura os próprios olhos, não enterra uma espada em seu próprio peito, não se enforca.
Ismênia vive! Ismênia vive, vejam só, vive porque se cala! Ela usa o silêncio como estratégia de insubmissão ao seu destino, como estratégia de desobediência. Nós a conhecemos, conhecemos a Ismênia. Já a vimos por aí. Os nomes delas não vou dizer. Não posso denunciar seu disfarce, pois o destino está sempre à espreita, certamente ele está lendo isso agora. Porém, ninguém nunca suspeitou que Ismênia é também heroína da desobediência.
Ismênia tem muitas filhas, uma grande descendência. E suas filhas sempre escapam da maldição. Usam os silêncios como astúcia. Escrevem livros em quartos de despejo. Desenham mapas para escravizados em fuga nas tranças nagôs.
Denunciam seus maridos algozes fingindo pedir uma pizza por telefone. Fazem as coisas justamente porque mulheres não levantam suspeitas. Ninguém nunca suspeitou de Ismênia, a “submissa”. Antígona desobedeceu a Creonte. Ismênia desobedeceu ao destino! Eu sei que para o leitor é difícil acreditar que também é forte quem desobedece à maldição do destino e escolhe viver – ora, viver é também um desejo puro e inegociável.
Autora Fernanda Batista Moreira de Andrade – @nandabma
Revisado por Gisele Sertão