Não sabia se começava me apresentando, optando por uma entrada romântica, mais otimista, ou tentando achar uma forma de (me) conter (em) tudo que roda como espiral e brota como um dedilhado no letreiro do teclado. Para variar, na minha luta constante contra mim mesma e, ao mesmo tempo, em defesa de um tempo que seja capaz de (a)colher a mim e a vários (sentidos de muitos outros) mundos, faço esta primeira postagem… quase uma (r)evolução para quem vive, sente e corre, tentando fingir ser possível dar conta de perceber tanto a todo instante sem arcar com os custos paralisantes.
A escrita é uma forma de sobrevivência… uma espécie de arquivo de mim mesma… rota de fuga e placa de aviso: em breve, inevitavelmente, vai faltar ar. Eu sei… há jeitos muito mais bonitos e elegantes para começar uma coluna. Prefiro colocar-me assim… por inteira, como quem faz da escrita seu campo de batalha, um lugar de afronta e de descanso… um pouco de tudo… uma síntese cotidiana.
Então, se, por um lado, há quem veja tal escolha como descompasso, solidão, atrevimento, indisciplina, incapacidade, falta de desejo, de vontade, de determinação, de orientação e de dedicação. Por outro, há… e como há… quem apenas perceba o quanto pode ser libertador encontrar seus jeitos de se fazer um pouco Gente inteira. Gente materna, atenta, sensível, imensa e que, como todo bom rio, tem seus contornos a fluir.
Definitivamente, mais do que nunca, é preciso saber fluir, transbordar, seja em algum tipo de mar, bastante tormentoso, seja numa espécie de oceano soberano, em que seja possível estar consigo mesma e, ao mesmo tempo, com todo mundo, mas longe de todo e qualquer barulho, som, despertador, apito, luz, buzina, e-mail, WhatsApp… longe de toda e qualquer velocidade que se imponha como um tempo desaforadamente desumano e desrespeitoso com o desejo elementar e mais valoroso de (de)morar(-se) em si mesma e com quem lhe seja possível (des)aprender a amar.
Talvez seja por isso que tenha aprendido a ler certas gentes e ouvir certas músicas em doses rigidamente programadas e organizadas, porque o cotidiano da geral, esse desumano, idealizado e sem gentes, sabe?… não está pronto para dar conta de quem nasceu com alma de (a)mar. E, sendo sincera, para mim, o cuidado, no meu cotidiano, é uma arte, nada romântica, mas minha arte e minha desafiadora habilidade de me entender como parte do tipo de Gente transbordante, Gente (de)morada… Gente capaz de se fazer (de)morar, mesmo quando o mundo inteiro gritar e tentar rotular a tua, só a tua genial-humana-arquitetura, como desmedida, inviável, improdutiva, descabida…
Talvez, seja esse (des)encanto com (a falta de) cuidado que me faça resistir e existir como própria ocupação de minha humanidade cuja defesa é condição de existência, colocando-me contra a derrubada de minha (de)morada, de minha liberdade, de minha vida e(m) contradição.
Pari um menino igual. É… deve ser por isso que me encanta problematizar nós(sos) cotidianos… porque aqui, somente aqui, no dia a dia, sinto ser possível fazer (r)evolução enquanto (des)encontro minha cria, minhas gentes. É sobre isso, sobre arte de se (re)fazer gente(s) e, mais especialmente, Mãe-Gente, Menino-Gente. É no detalhe da risada ou da dificuldade, do choro ou do abraço, das madrugadas exaustivas e dos dias de sol (nem sempre, ultimamente, quase nunca…) no parquinho, da distopia do supermercado e do pôr do sol que ainda é tão bonito, do despertador que anuncia mais um dia sem trégua… porque é aqui no cotidiano que me descubro parte de Gentes, Mães que também são Gente, que, nem sempre, mas quase sempre, separando espaço mental para dar conta do dia, das tardes e das noites e de todos os dias… e do choro de quem queria colo, mas precisa ser valente e encarar uma guerra na escola, ou ficar na casa da avó, da tia, da vizinha, de alguém que também faz do cuidado um pouco de arte… mas também parte dos cinquenta e cinco contínuos turnos de trabalho sem terapia… exaustas, ansiando pelo fim do dia, exaustas…, tem Mãe Gente que ainda limpa a casa, faz comida, conta história, lava roupa, dobra roupas, arruma mochila, organiza café da manhã, lanche, almoço, janta, e outro almoço e janta de dias infinitamente contínuos… e ainda estuda para prova do supletivo, da faculdade, daquele curso EAD, ou inventa um jeito de parir tempos, sonhos, coragem, projetos… tempo para apostar em si mesma, pensar e tentar estudar para a prova do concurso… para bater à porta e refazer seu lar… exaustas, tem mãe que ainda dá conta de manter um sorriso no rosto, fazendo-se de escudo, protegendo fundos e mundos… e também tem mãe que chora, sozinha, sem fazer barulho, enquanto tenta uma trégua da vida, sozinha… e, por milagres, em conjunto…
Tem Mãe Gente que também sabe ser importante, fundamental, possível e necessário chorar junto… lavar os olhinhos, pedir desculpas, saber-se Gente imperfeita e transbordante… exaustas, coletivamente exaustas… tem mãe desconfiando do desenvolvimento da cria, tem mãe sendo invalidada e sendo acusada por querer entender o comportamento estranho (desculpem-me a expressão, mas é a única que me parece mais certeira, no contexto) da cria… e claro, a culpa, sempre, ou quase sempre, atira sem culpa ou fingimento: a culpa é da mãe… e esse carimbo, um tiro…, faz a gente esquecer do quanto também somos Gente? Sabe? Por isso, a culpada mãe é aquela que não fez a introdução alimentar certa, é quem usa a tela do celular para ter uns minutos de folga enquanto faz tudo que já foi dito e, se olharmos direitinho, tudo aquilo e mais um pouco x 1000… é a mãe que, ao mesmo tempo, para garantir que a cria não vire a panela que ferve na última boca do fogão, diga-se: graças a Deus, a última boca do fogão que ainda funciona, porque, vocês sabem… tem muita Mãe Gente que faz milagre para dar conta do que é impossível de ser minimamente projetado…
Sabe, se todo mundo (de)morasse direitinho, se todo mundo olhasse para os cotidianos dos dias com cuidado, com dedicação e, se fosse possível, um pouquinho de carinho, seria possível perceber que, para cada milímetro do cotidiano, não tem calculadora que dê conta de dizer qual é o número – e o número bem certinho – que possa materializar o quanto “custou”, custa e custará dar conta de si, das crias, dos desejos, dos sonhos, dos mundos e, ao mesmo tempo, ainda ter de se reconhecer desprovida de resiliência para tentar, ainda que por poucos momentos, fazer-se minimamente palatável aos gostos e aos filtros sociais.
Aqui, gentilmente, agradeço a oportunidade de poder tentar me fazer, quem sabe, um pouco desse tipo de gente… gente de muitos papéis a partir dos quais colo e descolo os limites necessários para transitar num cotidiano nem um pouco resiliente, carente de afeto e quase sempre desprovido da capacidade de se tentar minimamente inclusivo. De todos esses papéis que, aos poucos, entre vida e cotidiano, desejo desaguar em partilha, tem um, mas um em especial, que não me deixa – e nem eu deixo – (me) partir. Sou do tipo gente mãe. E não daqueles tipos que conseguem dar conta de todas as tarefas… Sou do tipo gente mãe que vai desaguando rios por aí… que entre os passos necessários entre a porta da casa e a chegada obstinada ao portão do prédio consegue pensar no desafio de se fazer gente mãe quando nenhum tipo de seriedade, sincera desculpa, tentativa e erro, abraço, carinho, escuta, limite ou brincadeira são entendidos como ferramentas de um cotidiano que se pretenda humano.
Sou do tipo mãe questionadora, afrontosa, impulsiva, atenta, sensível e, dizem, reativa. Sou do tipo mãe que sempre está – mesmo não fazendo questão – no fluxo contrário. Se dizem faltar disciplina, contradigo: falta afeto. Se dizem faltar educação, respondo: quem dera eu tivesse tamanha liberdade como vocação. Se dizem, “mãe, você não pode atrapalhar o meu trabalho…”, respondo: me desculpe, eu não dou conta nem de organizar o meu – muitas vezes, com bastante dor ou ironia, embora nem sempre seja perceptível. Fato é que demorei, mas entendi, o quanto é custoso, mas imprescindível, me fazer exatamente desse tipo mãe que quase-sempre-todo-o-santo-dia-sem-qualquer-trégua-existencial-e-mental vive, sente, sofre
e morre, mas sabe se ver gente mãe, com força suficiente para despir-se de tudo e levar o tempo que seja necessário para se (re)fazer mais um pouco, mãe.
Não sei se faz sentido para quem está aí, no outro lado da linha, do tempo e do espaço… mas o cotidiano é isso… é saber(-se) capaz de ver a si e ao outro como gente de variados tipos e expressões, abstendo-se, na medida do (quase) (im)possível de julgamentos, se fazendo abraço, presença, cuidado, fortaleza. Termino, talvez, sem nem ter, de fato, começado… mas, registro para jamais esquecer: por mais importante que seja a luta no (e pelo direito ao) cotidiano, não tem faculdade, curso, pós-graduação, livro, filme, discurso e certificado irrevogável que garanta salvação eterna… por isso, cotidiano é cuidado e(m) arte.
Agora, com todo amor do (meu) mundo prestes a entrar em menos de 47 segundos, porque já escutei o apito de emergência religiosamente acionado no elevador por aquele que faz de mim um lugar cotidianamente (r)evolucionário… encerro e anseio pelo próximo encontro. Não estamos sós…
P.S.: sempre uma música faz de mim possibilidade e(m) escrita, então, hoje: “Sobre O Tempo” – Pato Fu.
Porto Alegre, 4 de julho de 2024.