Relações Étnico-raciais: Anastácia nunca mais!

Relações Étnico-raciais: Anastácia nunca mais!

Compartilhe esse artigo

“Eu não sou racista; (fulano) é meu amigo, pode falar. Não é, fulano?!”

“A (fulano) não é só empregada e babá das crianças; ela é quase da família.”

“Aqui, eu não consegui amamentar; meus filhos tiveram ama de leite.”

Não, essas expressões não são equívocos pontuais. São premissas assentadas em um modo de estruturar o mundo e as relações, que têm pra lá de meia dúzia de séculos e que não foi encerrado no Treze de maio.

A experiência da escravidão de povos do continente africano, bem como de povos indígenas, se baseou não apenas em uma atividade econômica demandada pelo poder colonial. Baseou-se na estruturação de valores que desumanizaram e “coisificaram” o corpo negro e indígena de tal forma que seu valor na sociedade passou a ser admitido de acordo com a função que cumpria na estrutura social.

Seja nas plantações de cana-de-açúcar, nas minas, nas fazendas de café ou nas incipientes cidades e vilas, o corpo negro dava o tom da economia, sendo a mão que plantava, colhia, cozinhava, limpava, cuidava, vendia, produzia manufaturados e garantia até o saneamento básico. Uma história de opressão e exploração que perdurou por 470 anos, e a abolição não tratou de encerrar a experiência; apenas a modernizou, relegando às massas ex-escravizadas a condição de figurar, em sua maioria, nos trabalhos de baixa remuneração e prestígio na então sociedade capitalista.

Tal estrutura social, baseada no racismo, só foi possível mediante a sensível particularidade do “racismo à brasileira”, que vem se dando nos últimos 134 anos a partir da romantização e da idealização de sua própria história, inaugurada principalmente pelo pensamento Gilberto Freyreano de que, no Brasil, houve uma relação simbiótica entre a Casa Grande e a Senzala, e que a harmonia resultou em relações democráticas que, na visão do autor, se provavam a partir da existência da figura do “mulato”. Ou seja, a mestiçagem passou a ser verificada como indicadora de relações étnico-raciais harmônicas, e não pelo que de fato foi: a violação sistemática do corpo da mulher preta escravizada.

Lélia Gonzalez bem retrata essas experiências no ensaio “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, explicando como o estereótipo da “mulata” e da “mãe preta” foram fundamentais para a estruturação do mito da democracia racial no país, de tal sorte que a mídia e os meios de comunicação em massa trataram de reproduzir esses estereótipos, bem como outros (o malandro, o favelado, a barraqueira, etc.).

É importante entendermos que, por mais que esses estereótipos se construam a partir de experiências concretas da realidade, trata-se de simplificações exageradas que essencializam, reduzem, naturalizam desigualdades e favorecem o pensamento maniqueísta.

Desta forma, quando assistimos à repetição de poucas características para grupos amplos da sociedade, replicamos mais preconceitos do que uma correspondência clara com a população.

O estereótipo da “mãe preta”, que tem na versão norte-americana a “Mommie”, preconiza a figura feminina negra robusta, maternal, de personalidade orgulhosa, subserviente e que abdica de sua própria narrativa para cuidar dos interesses da família dos brancos.

Na teledramaturgia, não faltam exemplos, como a icônica Mamãe Dolores (O Direito de Nascer), a Dalva (O Clone) e a Tia Anastácia (Sítio do Pica Pau Amarelo) – personagem criado por Monteiro Lobato que encarna, em sua obra, o “olhar do branco” sobre o negro.

E é justamente a partir da ruptura com esse lugar que escrevemos essa coluna, por entender que é preciso romper com essas estruturas mentais que encontram, na atualidade, uma atmosfera para se reproduzir, seja por meio da negação de direitos às mulheres-mães negras ou através da realidade, que amplia em quatro vezes mais as chances de sofrermos com a violência obstétrica, de figurarmos os piores indicadores sociais da violência física, sexual e do feminicídio.

Falaremos pelo corpo que sequer é reconhecido nos espaços de poder e decisão, salvo as exceções que vêm ampliando espaço nas instituições políticas por meio da luta constante. Falaremos a partir da negação da negação do Brasil. Pois, como bem disse Lélia: “Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”

Como uma mulher negra, mãe de duas, gorda, educadora e escritora, não aceitarei, para mim, o lugar de fala que foi designado pelo que sou. Aqui… Anastácia, nunca mais!

Compartilhe esse artigo

Leitura relacionada

Últimos Artigos

Deixe um comentário