Recuperando o fio

foto vera vera miranda (1)

Quando menina, não ouvia conversas sobre o parto. Nenhuma mulher havia me contado sobre as questões que envolviam esse momento tão marcante. E por que não? Ainda me pergunto os motivos por trás de tal silenciamento. Quase chegando aos quarenta anos, descobri que Laura, mãe do pai, minha avó, infelizmente não tive o privilégio de conhecê-la, havia tido oito filhos em casa, alguns recebendo apoio de seus familiares e vizinhos, pois a parteira vinha de longe e, quando chegava, o bebê já havia nascido. Assim como ela, outras mulheres também pariram em casa, com a parteira, com outras mulheres e até mesmo sozinhas.
Em que momento perdemos esse fio ancestral que nos trazia notícias daquilo que somos capazes de fazer?
Não consegui alcançar esse fio através das mulheres que me antecederam, ouvi somente alguns fragmentos de dor e sofrimento sobre a recuperação das cesáreas e sobre a tal dor insuportável do parto. Minha mãe às vezes soltava algumas palavras sobre a angústia de ter um filho puxado a ferro, lembro de ficar profundamente curiosa imaginando como seria esse ferro. Ainda menina perguntei muito sobre esse evento no breve tempo de encontro que tive com a minha mãe, mas não se contava muito sobre isso para uma criança.
Na escola uma passada rápida sobre a anatomia do corpo feminino, nada mais. O parto e o nascimento nunca foram um assunto na cozinha durante um café, na sala vendo as fotos reveladas, nadinha. Os primeiros bebês que tive contato, tanto na minha família, como na rua onde morava, haviam nascido de cesarianas. Lembro da minha mãe indo às casas das mulheres que haviam acabado de ganhar neném para ajudar a cuidar do curativo da cirurgia e também para ajudar com a amamentação, saber se precisava passar roupinhas do bebê ou simplesmente ajudar com qualquer coisa, lembro dessa rede de cuidado entre as mulheres.
Mesmo sem saber, fui compreendendo que o parto, assim como o nascimento, é singular e coletivo ao mesmo tempo. Talvez tenhamos perdido a ponta do fio que nos traz notícias dessa coletividade também. Quando começamos a viver esse processo de forma profundamente individual e começamos a acreditar que as coisas que nos cercam são “normais”?
No momento em que um médico aleatório me tocou na emergência de um hospital particular, ele era novo, parecia um estagiário, alguém que ainda acreditava na profissão, me olhou e disse: “seu trabalho de parto está avançando rápido”. Respondi: meu médico disse que meu bebê não pode nascer de parto normal, pois está profundamente enrolado no cordão umbilical, respondi com medo real de perder meu bebê, confiei no meu médico como uma filha confia em seu pai. Lembro do olhar dele me atravessando. Respondeu de forma cínica: “ah tá” e foi embora.
Meu médico assumiu, retirou meu bebê e afirmou: “nossa! ele estava muito enrolado”, olhei brevemente aquele rostinho e apaguei, acordei com uma sensação estranha nos meus seios, era minha tia tentando colocar meu bebê para mamar, enquanto eu ainda estava apagada pela anestesia, foi assim meu primeiro contato com a maternidade. Ele cheirava a jhonson’s, até o cabelinho estava penteado. Aonde eu estava? Entrei no hospital com uma barriga gigante, saí de lá com um bebê todo arrumadinho.
No dia seguinte ao nascimento, andando pelos corredores, foi a dica que recebi para eliminar os gases da cirurgia, parei para olhar aquele quadro com os nomes das pacientes. Algo chamou minha atenção: todas, eu disse todas as mulheres, haviam sido submetidas a uma cesariana.
Todas elas também haviam chegado com uma barriga, receberam um bebê cheiroso e arrumadinho, estavam exaustas da cirurgia, da anestesia e não haviam participado, vivido com o seu corpo ativo, vivo e forte o processo do seu parto, fomos excluídas do nascimento de nossos filhos. Vale ressaltar que a cesárea salva vidas diariamente, a questão é seu uso indiscriminado que atropela mães e bebês diariamente em nosso país.
O tempo passou e me dei conta de algo que me apertou ainda mais o coração: a quantidade de bebês que haviam nascido antes do tempo. Como me dei conta disso? Lendo um artigo sobre o aumento da medicalização infantil e a correlação com a intervenção precoce nos nascimentos, que na maioria das vezes provoca outras intervenções, na medicina conhecemos como efeito cascata. Como naturalizamos isso? Perdemos o fio, lembra? Como encontrar alguma ponta?
Me parece que uma das saídas é buscar em nossa própria história. Explorar as memórias familiares das mulheres que nos antecederam. E, como vagalumes que iluminam a escuridão, buscar fragmentos de luz que mostrem outros possíveis para a vida.
Dez anos depois, engravidei novamente, fui atrás de uma parteira, alguém que pudesse trazer outras notícias, alguém que pudesse contar oralmente a história de outras mulheres, alguém que ainda acreditasse que uma mulher é capaz de parir. A parteira me lembrou que as mulheres mais velhas sempre carregaram conhecimentos sobre as ervas e eram consideradas capazes de trazer suporte no momento do nascimento.
Durante minha gestação, ela me guiou para uma profunda conexão com a natureza, me aproximei da sabedoria ancestral, entendi a força do meu corpo, aprendi a ouvi-lo, me conectei com o meu bebê na certeza de que ele também sabia o que deveria fazer para nascer.
Caminhei, me banhei, troquei carinho com o meu parceiro, recebi afeto do meu filho mais velho, senti o calor da vida que brotava em mim e assim meu segundo filho nasceu na sala de casa. Ele saiu de mim como uma flor que brota de repente. Fiquei dias ocitocinada com aquele cheiro de vida que brotava dele.
No ano seguinte, fui abrigo novamente, agora de uma menina. Em um domingo de sol, ainda na praia, entrei em trabalho de parto e fiquei ali sentindo as ondas e a força da minha menina que se aproximava. Ela nasceu antes do pôr do sol, com o cordão umbilical imitando uma tornozeleira em seu calcanhar. Recuperei o fio, minha filha, agora não solto mais e entrego para você também.

Por Vera Miranda – @veralsmiranda

Por Vera Miranda – @veralsmiranda

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