E quando eles nascem à margem dos padrões biológicos e sociais? Pé de laranja não dá abacaxi como acreditavam nossos antepassados? Filho de peixe, peixinho é?
Imagine um barquinho branco flutuando no meio do oceano e, em vez de um barqueiro, duas árvores de caules finos sustentadas por barbantes amarrados a uma das laterais da canoa. As folhas dançam conforme o vento, que rege o destino da embarcação sabe-se lá para onde. Essa é a imagem da capa da edição brasileira de Longe da Árvore, Pais, filhos e a busca da identidade, escrito pelo jornalista estadunidense Andrew Solomon e publicado no Brasil em 2012 pela Companhia das Letras.
Há cinco anos, li pela primeira vez as 1.056 páginas do best-seller do New York Times. Em 2025, com quinze anos de maternidade e cinquenta de vida, ao reler Longe da Árvore por conta de minha participação no Clube do Livro do podcast Calma Urgente, não apenas revisitei a tese central do autor sobre a incorreção do termo (re)produção, como também percebi uma conexão direta entre o que meu pai dizia pelo menos vinte anos antes da publicação do livro e a ideia de Solomon de que não existe isso que chamamos (re)produção. Segundo ele, quando duas pessoas decidem ter um bebê, envolvem-se em um ato de produção: estão produzindo pessoas, não se reproduzindo.
Meu pai nunca leu Longe da Árvore, tampouco conhece a tese de Solomon. Eu sequer pensava em ter filhos quando o ouvia dizer que criar é uma enorme responsabilidade social e que família, sociedade e escola deveriam caminhar juntas nessa jornada. Se um desses pilares falhasse dizia ele falhávamos enquanto sociedade. É verdade que os conceitos de família, sociedade e escola mudaram muito desde o nascimento de meu pai, em 1948, até hoje. Ainda assim, quando ele fala em responsabilidade social, dialoga com a tese de Solomon: produzimos e não reproduzimos pessoas, novas gerações com outras visões de mundo.
O livro de Solomon nasce de uma extensa pesquisa com famílias cujos filhos nasceram apartados da identidade dos pais. Diferenças que se expressam como deficiência, genialidade ou desajustamento social e que escancaram a realidade nua e crua de uma parentalidade em que amor e sofrimento caminham lado a lado. No entanto, há algo em comum a todos que criamos filhos, sejam típicos ou atípicos, próximos ou distantes de nossas identidades: todos buscamos nossa própria identidade, pais e filhos.
Para Solomon, existem duas: as horizontais e as verticais. As identidades horizontais vêm de genes recessivos, mutações aleatórias, influências pré-natais, valores e preferências. Ser gay é uma identidade horizontal, assim como a genialidade, a superdotação ou a deficiência física. Nesse sentido, o excepcional é ubíquo; ser inteiramente típico é o estado raro e solitário. Já as identidades verticais são etnia, linguagem e religião esta última, segundo o autor, moderadamente vertical. A questão é que, embora muitos de nós sintamos orgulho por sermos diferentes de nossos pais, ficamos infinitamente tristes ao ver como nossos filhos são diferentes de nós.
Ao reler os doze capítulos (filho, surdos, anões, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, deficiência, prodígios, estupro, crime, transgêneros e pai), percebi que o livro revela a culpa, a vergonha, o luto e a frustração de quem cria sentimentos que muitas vezes se confundem com alegria, solidariedade e esperança. Buscando compreender as raízes de sua própria excepcionalidade como homossexual e disléxico, Solomon iniciou suas pesquisas anos antes da publicação. “Comecei a escrever este livro para perdoar meus pais e terminei-o tornando-me pai. Fui criado com medo de doenças e deficiências, inclinado a desviar os olhos de qualquer pessoa muito diferente embora sempre soubesse que eu mesmo era diferente.” (p. 784)
Relendo Longe da Árvore aos 50 anos, revisitei debates que tinha com meu pai, ele com 46 e eu com 20 sobre educação, sociedade e responsabilidades. Nossas conversas sempre foram profundas; não gostamos do raso. O simples não resolve questões complexas, e nisso somos parecidos, embora diferentes em tantas outras coisas. Curiosos que somos, amamos refletir. Meu filho de 15 anos, se me ouvisse dizer que amo refletir, prontamente perguntaria se sou espelho. Espelho de quem? Talvez de mim mesma, em busca de minhas identidades de filha, mãe e mulher.
A primeira vez que vi a canoa branca da capa, lembrei-me da pergunta que meus avós me faziam sempre que eu os desafiava com algo difícil, sem resposta simples: “Com quantos paus se faz uma canoa, Paula?” Recordei também os ditos populares perpetuados por nossos antepassados sempre que alguém elogiava uma característica herdada de um dos pais: “Pé de laranja não dá abacaxi!” ou “Filho de peixe, peixinho é!”
Mas, ao contrário, há muitos pés de laranja dando abacaxis no terreno fértil da parentalidade. Precisamos de centenas de milhares de paus para construir essa canoa chamada pessoa, e nem sempre filho de peixe, peixinho é. Logo, a responsabilidade de que falava meu pai, pelo menos vinte anos antes de Solomon publicar sua tese, não recai exclusivamente sobre os pais nem majoritariamente sobre as mães, como ainda é mais comum do que deveria ser. A responsabilidade da produção, e não da reprodução, de pessoas que compõem uma sociedade é minha, sua, do vizinho solteiro e sem filhos, do colega de trabalho. Mas é, sobretudo, do Estado, que deve pensar e atuar em políticas públicas de saúde e educação que caminhem de mãos dadas com mães que carregam sozinhas o peso de fazer florescer o fruto que caiu longe da árvore.
Por Paula Mazulquim – @leiakpaula





