O Abaeté é “uma lagoa escura arrodeada de areia branca”, como canta Dorival Caymmi, que eternizou esse importante ponto turístico de Salvador. Uma lagoa cheia de cantos, encantos e mistérios.
Por ser escura e enlameada, o Abaeté causa temor nos banhistas: ali já ocorreram muitos afogamentos de difícil salvamento. Ainda assim, é também um lugar de contemplação da beleza o contraste entre o negro da lagoa e o brilho da lua cheia de encontros de casais enamorados e de longos banhos e brincadeiras de crianças.
Segundo a canção, a lavadeira, ao amanhecer, vai lavar roupa se benzendo, com medo do batucajé. Essa referência remete ao uso da lagoa pelos seguidores do candomblé como espaço sagrado da orixá Oxum, deusa das águas doces.
O Abaeté foi também o ganha-pão de minha família e de tantas outras que viviam em Itapuã. Durante muitos anos, minha mãe vendeu acarajé ali profissão que aprendeu em sonho. Uma mulher que nunca foi da religião, mas que tinha forte intuição. Em um momento de desespero, com três filhos para alimentar, sonhou com santo Antônio ensinando-lhe a preparar o acarajé.
Esse sonho parecia realidade: alguém lhe mostrava como fazer o bolinho de fogo, comida preferida da orixá Iansã. Foi com o acarajé que não apenas criou seus filhos, mas também ensinou irmãs e vizinhas que enfrentavam dificuldades semelhantes.
Na profissão, conheceu artistas que frequentavam o Abaeté, como os Doces Bárbaros, Caetano, Gil e suas companheiras da época. Pessoas que a ajudaram a trabalhar em outros lugares, a empregar gente, e que a fizeram sonhar com um futuro melhor para seus filhos. Especialmente para mim, a filha mulher que ela sempre dizia não querer ver passar pelas mesmas provações que enfrentou.
Os sonhos sempre fizeram parte da vida de minha mãe. Como já disse, ela nunca participou dos rituais do candomblé e, por vezes, até os desrespeitou.
O Abaeté, escolhido pelos adeptos da religião para agradar Oxum, era constantemente visitado com oferendas, pedidos e agradecimentos. Em certa ocasião, foi deixada numa cesta uma linda boneca, que despertou em minha mãe o desejo de me presentear.
Exímia nadadora desde a infância em Bom Jardim hoje Teodoro Sampaio, em homenagem ao engenheiro e geógrafo homônimo, minha mãe nadou até a oferenda, pegou a boneca e levou-a para casa. Ao me entregar o presente, viu-me calar, algo raro para uma criança chorona como eu.
Mas naquela noite, outro sonho veio: Oxum exigia de volta o presente, afinal, era dela. A deusa ameaçava levar-me em troca. Assustada, minha mãe acordou, vestiu-se, pegou a boneca e caminhou até a lagoa. Lá, devolveu o objeto, entre desaforos e promessas de nunca mais repetir tal ato, exigindo ainda que nada me acontecesse.
Pode parecer uma anedota, mas minha mãe sempre afirmou que foi real. Desde então, nunca mais se apropriou de oferendas e passou a respeitar a religião que antes desprezava.
Assim, posso afirmar: o Abaeté guarda cantos, encantos, mistérios e, sobretudo, muito axé.
Por Jane Soares – @janedejesussoares1





