Não por vontade, mas por um desígnio indecifrável.
Viemos ao mundo arrancados de um silêncio anterior à linguagem, jogados num palco sem roteiro compreensível. No início, tudo é névoa, os sons, os rostos, o tempo. Gastamos nossos primeiros anos aprendendo a respirar dentro dessa engrenagem. E justo quando começamos a entender, esquecemos. A infância nos escapa como um sonho mal lembrado ao amanhecer.
Diziam que tínhamos potencial. Semeavam essa palavra como um encantamento. Potencial, liberdade e amor. Promessas vestidas de ouro para corações ainda puros. Acreditávamos que a vida era um livro em branco e bastava escrever com coragem. Mas não nos disseram que as páginas estavam contadas. Nem que o livro tinha dono.
Crescemos buscando o impossível, a liberdade prometida em discursos, em filmes, em livros. Crescemos acreditando que ser bastava. Mas o mundo não é feito de ser. É feito de poder, e o poder… tem donos. Invisíveis, inalcançáveis. Jogam o jogo, criam as regras, e nós dançamos.
Tornei-me adulta, e a sensação era de estar presa numa gaiola de vidro: vejo o mundo mudar, as máquinas falam, as curas chegam, os livros são digitais, mas o roteiro… o roteiro é o mesmo. Um ciclo vicioso de promessas recicladas, onde os lados políticos se alternam como máscaras de um mesmo ator cansado. O dinheiro muda de nome, de forma, de valor, mas o sistema permanece intacto, blindado.
Vivemos a pandemia, suspiro de distopia escancarada. Corpos desapareceram, o ar tornou-se ameaça. Mas, mesmo então, o pêndulo oscilava como sempre: ilusão de controle, ilusão de liberdade. Nos fazem crer que o mundo gira por nossas mãos, mas os fios são puxados por mãos sem rosto.
Criaram uma realidade paralela, redes onde a atenção é moeda, onde nossa angústia é capitalizada. Eles nos vigiam, nos moldam, nos distraem. As leis mudam, as telas brilham, os algoritmos nos conhecem mais do que nós mesmos. E nós? Acreditamos que ainda somos livres. Acreditamos que saúde mental é apenas uma escolha quando, na verdade, é a última trincheira de nossa humanidade.
Sabe aquela cena de final feliz, quando tudo dá certo no fim do filme? Aqui, esse fim nunca chega. Fica suspenso num limbo, como uma promessa que escorrega pelos dedos. Resta apenas o instante um sopro de lembrança do que é respirar, e aquela liberdade… aquela que um dia sonhamos quando ainda éramos crianças.
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Autora: Naná Magalhães / @naianamagalhaes