Memorial

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A gente passa uma vida se formando mãe e provavelmente acaba a formação quando para de respirar. Assim é em todos os setores da nossa existência humana: profissional, social, emocional e também o científico ou acadêmico. O mais interessante é que todos estes campos dialogam entre si e justificam nossa formação identitária. Foi esta trajetória de vida que formou a pesquisadora que sou. 

Sendo as minhas experiências as responsáveis pela lapidação de cada traço defendido nas linhas desta dissertação. Isto faz com que haja a necessidade de apresentar a Juborges a vocês. Falo do lugar de mulher negra (parda), mãe solo, periférica e professora. Falo do lugar de acadêmica que precisou ser insistente durante o processo formativo. Falo do lugar de quem já entendeu que os pilares opressores que mantêm a sociedade precisam ser tensionados objetivando que sejam aniquilados. Falo do lugar de quem vê na instituição família um recurso fundamental na formação do indivíduo. 

A começar pelo meu nome, acho interessante que saibam que Borges é herança da minha avó materna: mulher preta, retinta, com descendência escravizada, e que participou da minha formação dedicando todo afeto durante este processo. Já o Moreira é herança do meu avô materno: homem branco, violento com a minha avó e com seus filhos, cuja imagem me sugere autoridade, agressividade e opressão. Pensando na preservação da força ancestral no meu nome, sempre opto por usar o Borges. Pretendo carregar a minha avó, seu jeito afetuoso e suas ancestrais comigo, tratando o Moreira como secundário.

Minha avó tem papel fundamental em minha formação, isto porque enquanto minha mãe (que era solo) trabalhava, minha avó materna me dava a assistência necessária. Claro que ela fazia o que podia em um cenário de muita precariedade e desestrutura em várias camadas. Ela me oferecia o que era possível e eu via afeto em suas ações. Nunca assumiu uma postura violenta e sequer aquelas palmadas de correção eu recebi. Percebi que ela depositava esperança em mim, como fosse possível eu, a salvar de sua condição (que era na verdade nossa). Inúmeras vezes me vejo como a representante da minha ancestralidade. Como se todas mulheres vindas antes de mim tivessem se reunido e me escolhido para falar de nossas dores e dificuldades. 

Minha mãe, assim como a minha avó, me ofereceu o máximo que ela conseguia. A Dine (nome que substitui mãe lá em casa) tem afeto no olhar e nas ações, o que a torna um ser diferente, digamos que ela é iluminada. Dine teve três filhos, sendo eu a mais velha. Sou filha dela com um genitor desconhecido e a figura paterna eu pego emprestado dos meus irmãos mais novos. Vivemos juntos em um formato de família nuclear até os meus 8 anos e depois do divórcio meus irmãos ficaram com o meu “pai”, e eu com a minha mãe, apesar de ficar a maior parte do tempo com a minha avó. Este processo foi difícil, uma vez que me vi sem ninguém. 

Em um mundo ideal todos aprenderíamos na infância a amarmos a nós mesmos. Cresceríamos seguros de nosso valor e merecimento, espalhando amor onde quer que fôssemos deixando a nossa luz brilhar. Se não aprendermos o amor próprio na juventude, ainda há esperança. A luz do amor está sempre em nós, não importa o quão fria esteja a chama. (hooks, 2020, p. 107)

Minha proximidade com o amor e o cuidado não era uma constante, mas sim exceção. Nesta fase ainda vivia de forma a sobreviver e, isto não oportuniza o amar. Sentimento comum a esta etapa ainda era o medo. Inúmeras foram as vezes que me vi sem rumo, sem horários, sem a segurança de uma alimentação ou de um lugar para dormir. Nesta fase, até os 12 anos, me apegava a quem demonstrava querer cuidar de mim: minha avó, uma tia, vizinhos, amigas e professoras. E assim, fui. Uma infância entre brincadeiras, preocupações, escola, leitura e medo. 

Usando da minha liberdade presente desde os 8 anos, eu comecei a namorar aos 14. Eu simplesmente me apaixonei por um cara que foi legal comigo. Comportamento esperado diante do meu cenário e, confirmado por bell hooks quando diz que “para a maioria de nós, parece ser o suficiente porque é mais do que recebíamos dos nossos familiares” (hooks, 2020, p. 53). E neste período era exatamente isto. Bruno foi meu primeiro namorado. Ele era popular, engraçado e afetuoso. Fazíamos planos para nos casarmos ao mesmo tempo que brigávamos muito. Claro, pela imaturidade. Juntos tivemos nossas primeiras experiências no amor e, eu engravidei logo em seguida.

Toda vez que eu conto sobre este período, as pessoas esperam que eu trate com tristeza e pesar. Contudo, não lembro de nenhum cenário de tristeza. Eu estava feliz e o motivo trafegou entre o fato de eu ter a minha tão sonhada família e a imaturidade de compreender as lutas que eu travaria. A inocência me fez acreditar na felicidade da maternidade. Fui morar com o Bruno e Victor Hugo (Vico) nasceu em 2001, eu estava no ensino médio. 

Nunca deixei de estudar e ele se tornou minha meta de sucesso e minha companhia cotidiana. Talvez um dia ele possa confirmar isto a você, leitor. Afirmo diante do que vejo que ele é o máximo de pessoa. Somos a melhor dupla, e pude dar a ele todo amor que eu tinha reservado. Eu o levava para a escola, para grupos de jovens, e na biblioteca eu tinha companhia. A maternidade se tornou um lugar, onde eu pude respirar o amor de verdade. 

Bem, após o acontecimento “Vico em 2001” eu me tornei uma adolescente mãe e casada. Continuei a estudar e por vezes levava o Vico para a escola comigo. Terminei o ensino médio e comecei um cursinho preparatório para o vestibular. Em 2004 eu passei em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). O enredo foi o mesmo e vez ou outra Vico aparecia na faculdade. Comecei a lecionar com 19 anos, fazia faculdade de manhã, buscava o meu pequeno e juntos íamos para a escola. Fizemos este esquema durante os quatro anos de faculdade. Lembro que sempre tínhamos um lugar de parada que chamávamos de “lugarzinho”. Normalmente era uma árvore ou outro ambiente com sombra para uma paradinha para hidratar e para um bate papo. 

Ter um filho estando em formação é difícil e solitário. Por vezes, a menina quer colo, mas ela precisa ser colo e isto dói na alma. Claro que demos conta. Sempre seremos capazes juntos. Inúmeras vezes me pego pensando no quanto as pessoas negras ignoram a importância da saúde mental. O motivo é obvio: na verdade, estamos mais preocupadas única e exclusivamente com a nossa sobrevivência, deixando a reflexão sobre as emoções em último plano. Um equívoco. Principalmente as mães precisam entender que só serão parte positiva e atuante na vida de seus filhos estando bem consigo mesmas. Defendo a importância de cuidados com o setor emocional e ratifico a necessidade de assistência psicológica pública, principalmente às mães. Este suporte seria de grande valor no setor educacional das crianças, especialmente no primeiro estágio. 

Em 2010 engravidei da Ana Julia (Biju). Trabalhar em dois horários e ser mãe era a missão da vez. Mantive com a Biju o mesmo formato de levá-la por onde eu fosse. E me acompanhava para as escolas desde o primeiro ano de vida. Lembro de ela me olhar de longe e chorar, mas também lembro dela passar mal e eu estar lá para cuidar, uma realidade de prós e de contras. Todo dia ao final do nosso expediente estava lá com aquela carinha redondinha e crítica olhando para mim como quem diz: “desejei seu colo o dia todo e você só vem agora?”

Meu furacão particular se chama Biju. Convido todos a dialogarem sobre quaisquer assuntos com ela. Seu posicionamento crítico e cirúrgico construído em apenas 11 anos de vida pode surpreender qualquer pessoa. Eu a admiro e sinto que ela pode colaborar muito para a humanidade. Já a vejo fazendo isto em alguns momentos, vez ou outra a escuto evidenciando o posicionamento sexista de fulano, ou a intolerância religiosa de ciclano, ou criticando o capitalismo. Coisas que naturalmente passam despercebidas pela visão da maioria das pessoas, mas são percebidas e criticamente pontuadas por ela. 

O nicho maternidade me toca de maneira especial. Provavelmente devido a isso, questiono a educação a partir deste segmento, porque entendo que a manutenção patriarcal da educação como responsabilidade feminina pesa e assusta. Diálogos no setor educativo a partir da perspectiva feminina são valiosos e a sociedade não perde por se debruçar em estudos que visem maior suporte (financeiro, emocional e estrutural) às famílias, que são a primeira escola do indivíduo. Certamente, indivíduos mais seguros, autônomos e com liberdade cognitiva tendem a ser um projeto cujo resultado só pode ser evolução da humanidade em inúmeros setores. 

Se a educação do indivíduo deve ser motivo de investimento, por que não começar da base?


Autora: Sou a Juliana Borges, professora e pesquisadora. Instagram: @juborges.13.

Texto revisado por Cristiane Araújo.

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