Coluna – Carta para tomar fôlego

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Foto: Larissa Lima

Lembra, antes de qualquer coisa, que sonhar se reaprende. Que o tempo é espiral: agora, antes e mais tarde. Às vezes pode demorar, às vezes estamos correndo atrás do que parece tarde demais. Me explico: fiquei grávida no meio da pandemia, fui desenvolvendo a ânsia de prever o tempo; correr lá na frente, para depois voltar e conseguir caminhar em segurança. Agarrada em alguma fé de que minha criança nasceria em um mundo ainda possível de se viver. Por um certo tempo, o isolamento nos protegeu não só do vírus. Filho de um casal interracial – mãe branca e pai preto – (atualmente, separados) os olhares do mundo externo eram fatais em julgamento. Suspendia meu pensamento escrevendo canções, diários, orações e poemas para sua chegada. Mal sabia o que o destino nos reservava. 

Já no pós-parto, o teste da orelhinha deu “alterado”. Nada que tirasse o encanto daquele sorriso miúdo em meus braços, nascido de parto natural, em seu próprio tempo. Um ano e sete meses depois, as evidências começam a escancarar o que antes era uma suspeita. Não se assustava com barulhos, não olhava para trás quando o chamávamos fora do seu campo de visão; não reproduzia pequenas palavras como “mama”, “papa”. Após algumas tentativas frustradas de realizar audiometria, partimos para o exame BERA, onde recebemos o diagnóstico de surdez severa-profunda bilateral. Logo em seguida, a surdez de Dante foi descrita como neurossensorial por um otorrino cirurgião, com indicação para implante coclear. No primeiro momento, tudo parecia uma questão meramente clínica, um problema a ser resolvido. Eu parecia correr mais uma vez para antever todo e qualquer obstáculo, e ir lá superá-lo, para que meu filho pudesse percorrer o caminho livremente.

Até que ele começa na creche regular e me deparo com outros desafios, de socialização. Essa tal de inclusão existe mesmo? As perguntas começaram a se acumular, e eu já não visualizava as respostas. Uma névoa foi se formando em torno das decisões a serem tomadas. A única coisa que eu sabia era que eu tinha que aceitar, amar, acolher a existência do meu filho, da forma que fosse. Que a referência de criação que eu tinha, não me serviria. Teria, a partir de então, que me reinventar, sem me comparar com as mães de crianças “típicas”, consideradas “normais”.

À medida que vou assimilando minha nova realidade, de mãe de uma criança surda, vou usando a minha maior arma, enquanto jornalista inquieta: a comunicação. Aos poucos, vou me valendo da minha posição de mãe ouvinte, para fazer o que me cabe: escutar ativamente. Desde a descoberta, tenho me dedicado a buscar informações – um véu invisível as recobrem, quando não se tem referências, acessos. Então fui me engajando a conhecer pessoas, instituições, e me deparando com diferentes pontos de vista. Militantes da comunidade surda que se opõem ao uso do implante coclear, por considerarem uma imposição da cultura ouvinte à oralização de surdos; por outro lado, familiares meus e conhecidos profissionais da medicina, defendem a cirurgia do implante como um ganho positivo para desenvolvimento cerebral e social… Escuto relatos de mãe de criança surda implantada que obteve uma boa adaptação, paralelo a pai de adolescente surdo implantado que aos 15 anos parou de fazer fonoterapia, porque prefere se comunicar em Libras com outros amigos surdos… Professores de libras que acham o implante uma ilusão… 

Já fui e já voltei várias vezes na decisão de fazer ou não o implante coclear. Adiei em muitos meses os exames necessários para o pré-operatório. Nesse meio tempo, nos comunicamos intuitivamente, de um jeito só nosso. Me matriculei num curso de Libras, me encantei pela cultura surda, pelas conquistas do povo surdo, pelo acesso à educação, pela poética da língua em si, sua expressividade e construção de significados. Ele ainda não reproduz os sinais, mas entende bem os de ordem mais prática do dia-a-dia: comer, dormir, banhar, “não pode”. Quando penso que não sei a direção, o sorriso dele é a minha bússola.  Às vezes o ar parece faltar – ainda não tenho respostas. Venho tomando fôlego nesse largo e curto espaço-tempo, provando também do privilégio de acompanhar cada novo aprendizado, cada pequeno avanço dessa busca conjunta, por desenvolver-se de forma saudável, por acessibilidade, por ser feliz. Nessa conversa infinita, vamos tecendo nosso hoje-amanhã-e-depois. Nos encontraremos nessa mesma coluna para partilhar nuances e profundezas dessa dança-travessia.

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