A maternidade me transformou

Compartilhe esse artigo

Desde muito cedo aprendi a ter vergonha do meu corpo. Cresci em lar e profissão protestante tradicional. Ser mulher significava, para nós todas, a submissão a uma regra específica: não há protagonismo feminino fora da tutela masculina. 

Enquanto mulher, poderia estudar, trabalhar, ter minhas ideias biblicamente orientadas, adentrar nos espaços destinados a nós dentro da complicada e fechada hierarquia religiosa. Mas nunca poderíamos nos sobrepor, seja nas micro relações ou nas grandes decisões, às ações masculinas. 

O espaço religioso era dos homens. Não tínhamos pastoras, apenas missionárias, líderes, professoras, cantoras – todas ocupações muito importantes, mas nunca a principal delas: “pastorear ovelhas”. Essas restrições eram acompanhadas de um grande controle de nossos corpos. 

O corpo-mulher era um corpo ocultado, imperfeito, coberto. Havia um sentido: como casa do Espírito Santo, corretamente nos fecharíamos para o mundo, guardando-nos para Deus e para nossos esposos. Sem dúvidas respondidas, sem autoconhecimento. 

Lembro a primeira vez que ouvi falar a palavra masturbação, em um “diálogo” que se resumiu a: você sabe o que é masturbação? Após a resposta negativa da pequena, eu, aos onze anos, ouvi: tudo bem, então. Esse foi o diálogo.

Crescer nesse ambiente me ensinou a temer a sensualidade do meu corpo, ter medo das minhas curvas, odiar cada pequeno desvio da imagem ideal de mulher: magra, cabelos longos, feminina, impecável, submissa. Cresci com essa ideia: não consigo me adequar. 

Sou inadequada, com minha barriga protuberante, meu corpo sem curvas válidas, meus jeitos que, por mais que lutasse contra isso, se assemelhavam aos gestos dos meus amigos. Além disso, errada por sempre sentir um forte impulso sexual. 

Beijei muitos garotos. Desejei amigas. E, no meu mundo escolar, longe dos olhares paterno, materno e pastoral, fui um pouco do que sou: transgressora. Porém, ao longo da vida, busquei me adequar. 

E encontrei na vida matrimonial e materna um bonito refúgio: não me casei com um homem religioso; prossegui com os estudos superiores até o último grau de formação; tive um filho muito desejado. E ao longo de tantos anos ao lado do meu companheiro, comecei a me conhecer. 

Lembro do primeiro orgasmo e da revelação surpreendente: mulheres também gozam! Mulheres, como eu, podem expressar seus desejos, suas fantasias, sua sexualidade. Meu corpo, para meu companheiro, era belo em suas formas, desejável. E como foi bom me sentir assim.

A maternidade me descortinou um universo. Desde muito cedo eu soube que gostava de meninos e meninas, mas, dentre os inúmeros silenciamentos aos quais fui submetida, eu apenas “sabia” que existiam lésbicas, gays e heterossexuais. Já que meus desejos se direcionavam para homens e mulheres – e hoje eu sei, para corpos – eu não me encaixava numa definição homossexual. 

Eu sempre me identifiquei como heterossexual, por medo, desconhecimento, violência. Quando cheguei à universidade, ouvi a palavra bissexualidade, e por longos anos lutei com essa palavra tão forte e empolgante. Seria eu uma pessoa bissexual? 

Durante a gravidez, os meus desejos afloraram, e eu sonhei por muitas vezes com as mulheres que passaram por minha vida. As mães sabem o que são os hormônios maternos, os orgasmos durante o sono… 

A gravidez mexeu com minha mente e com meu corpo, e de forma muito bela e cristã, me trouxe uma força inexplicável de não temer meus caminhos. 

Quando meu filho nasceu, eu rompi com minha instituição religiosa. Busquei outro lugar, agora, sim, seguro. Decidi que não viveria mais violentando nossa família, que eu lutaria de todas as maneiras para que meu filho fosse mais livre do que nós. E aqui estou eu, em meio a lágrimas, falando dessas duras escolhas.

Hoje eu saí pela manhã com meu filho. Tomamos um suco de acerola e um pão de queijo, como sempre, divididos. Levei-o para o seu primeiro corte de cabelo. Uma lágrima caiu ao ver como ele cresceu. 

Depois entramos em algumas lojas. Comprei um short, uma minissaia e um maiô de uma cor que pouco utilizo: cor de rosa. Voltamos para casa. Meu companheiro nos recebeu de sorriso aberto, dizendo: “esqueci de te dizer para levá-lo ao barbeiro, mas parece que você leu minha mente”. 

Resolvemos não cozinhar e ir à praia. Vesti meu maiô e meu short. Pus um colar que ganhei de uma grande amiga há quatro anos. Fomos à praia. Eles mergulharam, eu conversei por telefone com outro grande amigo. 

Encontramos um restaurante. Meu filho brincou no escorregador. Tomamos uma cerveja. Comprei uma tornozeleira com uma concha e seis miçangas nas cores roxo, rosa e branco. Depois reparei que meus seios desproporcionais não me incomodaram, nem minha barriga, nem minhas pernas com estrias. 

Ainda menos os pelos pubianos que esqueci de aparar. Fui à praia, após muitos anos, sem medo algum dos olhares que me acompanham desde que nasci. Mergulhei no mar e em mim.

Por: Anônimo.
Revisão: Vanessa – @elasoqueriaescrever

Compartilhe esse artigo

Leitura relacionada

Últimos Artigos

Deixe um comentário