Hoje a conversa é sobre arte. Um pouco sobre a experiência de levar o Miguel ao museu pela primeira vez e uma pequena reflexão sobre crianças e espaços culturais.
Um dia desses, encontrei na estante um livrinho da infância. Escrito por duas educadoras especializadas em Artes Plásticas, ele conta de uma maneira interativa a história de um menino chamado Rafa, que encontra por acaso um mundo fantástico onde as coisas são cheias de cor, animais estranhos, criaturas excêntricas e figuras gigantes, com pés enormes e uma pequena cabeça. Baseado no imaginário artístico de Tarsila do Amaral, o livro convida a criança a mergulhar nessa aventura explorando a imaginação e os sentidos, em contato direto com o universo expressivo criado pela artista.
Não precisamos ler muitas vezes para que o Miguel fosse envolvido pela narrativa. No folhear, interagiu com as páginas, criou suas próprias teorias, se conectou com os personagens e logo elegeu seus favoritos.
Na terça-feira, 2, juntamos uns amigos e fomos prestigiar a exposição Tarsila Popular, no Museu de Arte de São Paulo (MASP). A exibição, que fica a mostra até o dia 28 desse mês, é descrita pelo Museu como “a mais ampla já dedicada à artista, reunindo 92 obras a partir de novas perspectivas, leituras e contextualizações.”
Nós tivemos a sorte de pegar um dos poucos dias quentes de julho — e, talvez por isso, também nos deparamos com uma fila enorme, consequência da entrada franca que o museu oferece às terças-feiras. Aproveitei a espera para apresentar pela primeira vez o local ao Miguel: Tiramos fotos no Vão, brincamos no espaço entre as filas e até perdi a atenção da criança pra uma pomba. O Miguel é uma criança altamente sociável, apesar de tímido. No tempo em que aguardamos na fila, nos garantiu algumas risadas, interagiu com novos “amigos”, vestiu a capa e se transformou no Batman e no Drácula — com direito a interpretar o vampiro virando morcego e tudo.
Dentro do prédio, aproveitamos para visitar as outras exposições em cartaz. Começamos pela mostra Habitat, que aborda a vida e obra de Lina Bo Bardi, arquiteta responsável pela concepção da atual sede do Museu de Arte. Devido a sua forte relação com o museu, a exibição conta, em uma forma de metalinguagem, com uma seção especial dedicada ao MASP. Seguimos pelo acervo de têxteis pré-colombianos, que dispõe de 906 peças pertencentes a cultura ameríndia, produzidos nos Andes, e vai além do título, abrangendo também outros objetos como cerâmicas e metais. A próxima parada foi o acervo permanente do museu, que abriga diversas obras de renomados artistas. (é possível explorar on-line o acervo do MASP aqui).
Mas a estrela daquela tarde ensolarada era Tarsila. E se do lado de fora as filas davam voltas que preenchiam quase todo o espaço, do lado de dentro o quadro não era diferente. Tinha gente em todo canto, concentrada principalmente em volta dos quadros mais populares. (A Tarsila é popular, risos).
Antes de entrarmos na exposição, eu pensava em tirar fotos, registrar o momento. Uma vez lá dentro, no entanto, alguma coisa me fez abandonar a ideia. Talvez fosse a quantidade de pessoas. Talvez porque não houvesse nenhuma foto que eu pudesse tirar ali que já não tivesse sido tirada antes, de uma maneira melhor: nós encontramos essas imagens nos livros de arte, no acervo online do museu, numa busca rápida em qualquer site de pesquisa. Ao abaixar a câmera, me abri a um outro tipo de experiência. Embora tenhamos tirado algumas fotos (meio tortas, meio desfocadas), deixamos muitas outras pra lá. E isso de alguma forma enriqueceu aquela vivência.
Com Miguel a tiracolo, pudemos explorar em conjunto aquele mundo de cores. A mostra faz parte de uma série organizada pelo museu, reconsiderando a noção de popular. Tarsila Popular entra no contexto de um ano dedicado exclusivamente à mulheres artistas e dialoga com exposições passadas, presentes e futuras. O que é popular em Tarsila está no retrato do cotidiano, que por sua vez se passa em diversos cenários típicos brasileiros, com personagens reais e inventados. O negro, o índio, a mulher e as crianças: todos eles têm espaço em sua narrativa artística, retratados em pinceladas e mesclas de tintas sobre a tela, com a vivacidade da paleta de cores da artista e ressignificados dentro de um estilo considerado antropofágico. Tarsila arranca suspiros e transborda brasilidade.
Tudo o que Miguel tinha de impaciente ao visitar o acervo permanente, tinha de encantado no andar de baixo. Se fascinou de sua maneira pelos quadros. E eu, surpresa todas as vezes que passávamos por algum e ele imediatamente associava às imagens do livrinho. Como no Porto, com seus tons de azul e barcos espalhados, ou no Cartão-Postal, resgatando, com suas palavras, a dualidade proposta pelo personagem Rafa, que não sabia se eram macacos que pareciam gente ou gente que parecia macaco.
Fiquei feliz em ver que, a partir da associação com uma historinha que lemos juntos, ele de alguma forma internalizou aquelas imagens. Mas a melhor parte é poder ressignificar essa arte, e não tem ninguém melhor do que as crianças para fazer isso. Pra cada pergunta que eu fazia ao Miguel sobre as pinturas, ele vinha com uma explicação. Às vezes alguma ideia mirabolante sobre o que acontecia naquele quadro, às vezes uma interpretação crua envolvendo a mamãe, a vovó, a criança, a casa.
– O que você acha que tá acontecendo aqui?
– Aqui é a mamãe levando as crianças pra casa. Não. É a vovó. A mamãe tá ali na porta esperando.
Assim, percorremos cada divisão da mostra. Conhecendo as obras, observando seus detalhes, criando reflexões sobre elas. Nada é mais surpreendente do que a pureza da criatividade das crianças.
Quando finalmente chegamos ao Abaporu, encontramos uma multidão a sua volta. Todo mundo queria tirar uma selfie com a celebridade da exposição. Eu, mãe babona, também capturei uma foto do Miguel (meio de ladinho). Ele adorou ver grande aquele personagem que conheceu na história, mas o seu preferido foi o Antropofagia (por que será, né?). Que aliás, me corrigiu quando falei o nome: “Não, mamãe! Esse que é o Abaporu.” Então tá.
Enfim, poderia terminar esse texto dizendo que Miguel se comportou, mas não era esse o intuito. Quando se fala em museu e outros espaços culturais, vem do imaginário coletivo essa ideia de templo, um lugar envolvido por uma sacralidade muda, que contempla com o olhar culto e a voz calada. Esta é a imagem que construímos e que inconscientemente tendemos a reproduzir. As crianças não. Elas pulam na fila, querem sentar no expositor, fazem barulho. Criam sua própria forma de crítica, dizem que o quadro famoso do Van Gogh é feio, querem que todos os quadros sejam Abaporus. Acontece.
O que aprendemos com essa experiência é a ensinar. Ensinar a respeitar o espaço, a entender as regras de preservação que se aplicam aos museus, a considerar toda forma de apreciação expressa por outro visitante. Mas mais do que isso, ensinamos a criança a ser receptiva ao fazer artístico e a cultuar toda forma de manifestação cultural a partir do que lhes é natural: a interatividade e a exploração.
Levem crianças ao museu. A experiência vale muito a pena.
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Autora
Yasmin Chinelato, paulistana e mãe do Miguel, um virginiano que desde 2015 vem transformando sua vida. Apaixonada pelas letras, em 2019 resolveu compartilhar conversas sobre maternidade e outros assuntos cotidianos no medium @yasminchn.