Nas entrelinhas de um corpo que resiste

leliane ribeiro

Eu já não me reconhecia no meu corpo antes mesmo da maternidade.

Afogada em um ciclo de uma relação adoecida, eu descontava minhas frustrações na comida. O aumento de peso foi o reflexo visível de um vazio que eu não conseguia enxergar.

Eu, que sempre amei fazer exercícios, me vi acomodada à nova vida: exausta no trabalho, sobrecarregada em casa, na ânsia de ser notada, de ser amada. Esqueci de me amar.

Olhar no espelho era algo que eu não fazia, ao contrário: eu corria.

A vida seguiu até que, com três anos de casada, tive minha primeira filha. Experimentei o maior amor do mundo e ao mesmo tempo me entreguei ao autoabandono.

O corpo emagreceu com a amamentação, mas o medo do espelho permaneceu. Eu não me reconhecia mais; me via no espelho, mas não mais me enxergava.

A rotina depois da maternidade é implacavelmente esmagadora. Eu fazia tudo: casa, filha, médico, decisões. Aos olhos de fora, éramos o “casal margarina”. Dentro, eu me sentia sozinha.

No silêncio da solidão que gritava dentro de mim eu voltei a descontar na comida toda a minha necessidade de prazer.

Eu não sabia explicar o que faltava, e não entendia o que se passava! Afinal, eu tinha tudo que a sociedade diz que nós, mulheres, devemos ter para sermos felizes. E eu acreditava que era feliz, mas sentia falta de uma parte: sentia falta de mim.

Os questionamentos internos eram muitos, a culpa era gigante, o medo assustador e a zona de conforto era muito desconfortável.

Vieram as cobranças pelo meu corpo. “Você precisa se cuidar, você está gigante.” Os elogios sumiram, mas as críticas ficaram. Eu tentei a academia, não sustentei. Tentei me arrumar, mas era sempre motivo de desconfiança. O peso cresceu junto com o silêncio. Três anos depois, outra gravidez. Mais quilos, menos energia, mais cobrança, mais autocrítica, menos autoconfiança.

Perdi o amor-próprio. Ganhei medo, culpa, agressões silenciosas e verbais. As frases ecoavam: “Ninguém nunca vai te querer com duas filhas.”Ninguém vai olhar para você com esse corpo.” “Se eu for embora, você acha que alguém vai olhar para você? “Eu não só ouvi, repetidas vezes, todas essas frases, como acreditei nelas.

Internalizei cada uma e tomei como verdade. Com autoestima dilacerada, o sorriso era sem brilho, mas algo me manteve sempre de pé. Nenhuma frase conseguiu abalar o que trazia no coração – e eu sabia que nesse lugar eu era realmente boa.

Comecei então uma busca pelo autoconhecimento, aos poucos vendo surgir um novo eu. Desconhecido ainda, mas curioso e disposto a mudar a vida. Não fiz alarde, mas vi o amor doentio dar lugar a indiferença.

O desejo de me separar cresceu, mas o medo de para sempre ficar sozinha gritava dentro de mim, afinal “ninguém vai me olhar com esse corpo”. Eu ainda era refém dos padrões que foram impostos; estova crescendo, mas ainda tentava me encolher para caber na caixa. Salvar o casamento era a opção, embora eu quisesse apenas me salvar naquele momento!

Chegando a pandemia, escancarou-se o que já não se sustentava. Descobri traições, escolhi o divórcio. Foi o início da minha coragem. Difícil, mas libertador!

Fui então me “buscar”; o autocuidado parecia começar fora, no simples ato de fazer as unhas toda semana. Mas era bem mais que isso: era o pequeno esforço de fazer algo que me desse prazer, além da comida.

O tempo foi passando e um dia parei em frente ao espelho e não só me olhei – eu me vi. Fiz então as pazes com o espelho, me admirando pela coragem, pela luta e pela aparência. Vi que a bondade que morava no meu coração transcendia, mais que qualquer estética. Agora seria eu, me valorizando por quem era, me enxergando além do caos, além da dor.

Eu – que quando casada tinha uma rede de apoio, mas não tinha energia e disposição – hoje, completamente sozinha, com duas filhas e uma rotina muito mais apertada, tenho tempo também para mim. Fruto de uma escolha, quando renunciei ao lugar que não me cabia, encontrei a dimensão do espaço que me acolhe e me permite ser cada vez maior.

E foi nesse esforço diário de me encontrar que achei a cura, quando um dia, correndo sem nunca ter corrido, experimentei o remédio para minhas crises de ansiedade. A corrida me devolveu o fôlego da vida.

Cinco anos depois, sigo transformando meu corpo e minha mente. Não pela estética, mas pelo prazer de existir inteira. Hoje sou mãe, profissional, mulher admirada por mim, pelas minhas filhas e pelas pessoas à minha volta.

Aquela que vivia cansada, hoje tem, como sobrenome, Disposição.

Vivo de fazer as coisas, me motivo com projetos ousados de reconstrução da mente, do corpo e da alma.

Da expectativa de ser amada, aprendi a me amar.

Do sonho de caber, conquistei a liberdade de crescer.

Daquela que fui, guardo as lições e o orgulho imenso de ter me transformado na que hoje vive em mim.

Dos pesos que insistem em me dar, eu insisto em recusar. Segue comigo o que é leve.

A culpa não mais me acompanha. Ela deu lugar à vontade de evoluir e viver a vida tão intensamente, a ponto de nunca mais me abandonar.

Meu corpo segue mudando, mas não como quem sofre e sim como quem dança, porque aprendeu que a vida não é caos, mas música, que a cada fase toca um ritmo.

Entendi que o preço do autoabandono é alto. Mas também entendi que sempre há tempo de fazer as pazes com o corpo e com a alma.

Onde antes havia medo, hoje há amor-próprio.

Onde antes havia silêncio, agora existe voz.

O corpo que resiste, hoje corre, dança, vibra e também escreve.

Por Lili Ribeiro Instagram: @liliribeiro.escritora

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