Na sala de cinema eu senti que o filme caminhava para o fim. “Não acaba, não acaba, não acaba. Não, agora.”
Para a minha não surpresa, apareceu a tela branca, e o letreiro “ aftersun”
Continuei olhando para tela, na esperança de ver mais alguma pista, informação. Os créditos subiram, as luzes acenderam.
O filme é ambientado no verão da Turquia, durante as férias de Sophie, 11 anos e o seu pai. As cenas são lindas. É solar e angustiante ao mesmo tempo. O filme se passa nos anos 90. Eu lembro pouco da minha infância, mas meus 11 anos, na década de 90, aparecem nítidos na minha memória. Sophie me levou para um tempo espaço simbólico.
A pré-adolescência é uma grande ruptura. A relação com os pais muda, porque a forma como você experimenta o mundo se transforma. Não é só o corpo que amadurece como fruta e convida os pássaros a bicarem, mas as angústias humanas, desembaçam aos olhos da não mais criança. Sophie é sensível, e a figura do pai é maior do que todas as outras que o constitui como homem. Junto com Sophie, acessamos parte de seu pai. A outra parte é embaçada. Dá pra ver conflitos, mas não muito bem.
Como o olhar aprende a atravessar arestas escuras, num curto período. O que está guardado nas entrelinhas do sorriso de meus pais, avós, tios, quando assisto numa VHS todes reunidos na mesa do bolo do meu aniversário de 8 anos? Quando é que minhas filhas acessarão a fundo o peso de minhas angústias? Que lembranças elas terão de mim, aos 7, 11, 15 anos? O que elas estão vendo agora de mim? Como reagirão ao descobrir minhas mentiras?
Escondemos dos filhos que não está tudo bem na relação de mãe, pai, avó, tia. Escondemos que tem dinheiro. Que não tem dinheiro. As histórias de famílias têm tantas camadas e versões e sentidos e esconderijos. Até hoje, se eu cavuco, se converso, se me aproximo, recebo informação nova, pesco um detalhe, e ai reconstruo a imagem de avô, tia, mãe, pai. São tramas e complexidades que nos integram e desintegram continuamente.
Na adolescência a vista desembaça e as mentiras (ou verdades?) aparecem como feridas expostas na pele. Lila, personagem de Elena Ferrante na tetralogia Amiga Genial passa na adolescência pelo que batizou de desmarginação. Numa noite de ano novo, o irmão – a pessoa que mais ama com fisionomia de rapaz generoso, honesto e feições amenas – é tomado por uma fúria, fraqueza e alegria, durante uma disputa de fogos de artifícios com adolescentes do bairro. E aqui abro aspas e copio um trecho do livro, porque a cena de desmarginação que li, nunca mais saiu da minha cabeça.
(Lila sobre o irmão Rino): “ela tivera a impressão de enxergá-lo pela primeira vez, como realmente era, uma forma animal, tosca, atarracada, a que mais gritava, a mais feroz, a mais ávida, a mais mesquinha (..). Lila imaginou, viu, sentiu – como se fosse real – seu irmão se rompendo” (…). Ali, em meio a explosões violentíssimas, no frio, entre a fumaça que queimava as narinas e o cheiro violento de enxofre, alguma coisa violou a estrutura orgânica de seu irmão, e exerceu sobre ele uma pressão tão intensa que desfez seus contornos, e a matéria se expandiu como um magma, revelando-lhe de que realmente era feito. Cada segundo daquela noite de festa lhe causou horror, teve a impressão de que quando Rino se movia, quando se expandia em torno de si mesmo, toda a margem cedia, inclusive ela, suas margens, se tornavam cada vez mais fluidas e cediças”
Depois dessa noite histórica, Lila nunca mais enxergou o irmão da mesma forma. Perder a margem, é perder-se no escuro. Sem contorno, não tem forma. Sem forma não tem palavra. De repente a gente vê um corpo se romper em bruta matéria insensata. Isso costuma acontecer na adolescência, e nunca mais para de acontecer. E então recolhemos os pedaços e reconstruímos, porque não somos ninguém sem mãe, pai, família, história. Uma nova forma da pessoa se coloca a nossa frente, talvez amemos, talvez odiemos e talvez nunca paremos de reconstruir. A culpa é dos olhos, quem um dia alcançaram fundo.
Depois dessa noite histórica, Lila nunca mais enxergou o irmão da mesma forma. Perder a margem, é perder-se no escuro. Sem contorno, não tem forma. Sem forma não tem palavra. De repente a gente vê um corpo se romper em bruta matéria insensata. Isso costuma acontecer na adolescência, e nunca mais para de acontecer. E então recolhemos os pedaços e reconstruímos, porque não somos ninguém sem mãe, pai, família, história. Uma nova forma da pessoa se coloca a nossa frente, talvez amemos, talvez odiemos e talvez nunca paremos de reconstruir. A culpa é dos olhos, quem um dia alcançaram fundo.