Por Yasmin Rodrigues | @yrodriguesdealmeidatrindade
As paredes branco-gelo ficavam ainda mais frias à noite. De dia, amarelavam-se com o sol e aqueciam um pouco as teias nos cantos. Os cantos embalavam todos os atos que, cotidianamente, se repetiam: amamentação, banho, colo, choros – esses, bem chorados, têm um duplo plural: eram vários choros e chorados pelas duas, mãe e bebê.
Em tudo, havia música e essa parecia ser a agulha que costurava aqueles dois seres miúdos que nasceram. Mãe e bebê, todos os dias, se embalavam.
Outro dia, a mãe me disse que ninar a criança era como um mantra, fincava seus pés no presente. Ali, na canção de ninar, não havia espaço para as dúvidas que acompanham essa etapa. Era apenas a certeza de sua voz saindo, suas cordas vocais sendo movimentadas pelo ar e produzindo segurança. Ela tinha uma voz péssima, mas sempre quis ser cantora, foi ali que conseguiu.
As teias que se teciam nesses cantos eram muito delicadas, mas, pouco a pouco, iam ganhando camadas e camadas, voltas, desenhos, contornos. Havia ali um bioma sendo criado. As aranhas na parede branca, as teias da mãe e do bebê, as costuras de ambas, as formigas passeando na mesa da sala, os mosquitos combatidos com repelente elétrico, a fumaça da água quente para o café, mesmo o pão de todos os dias parecia estar vivo e compor aquele lugar.
Pela manhã, o sol entrava em todos, as cortinas balançavam com o vento, o carteiro vez ou outra entregava algo, os cachorros da vizinhança latiam. Havia o choro constante do bebê, a música constante da mãe, os bocejos dos dois. Tudo, no final, era música. Tudo, no final, era um canto. Um canto, por vezes, apertado.
Deitava na rede amarela da sala. Sentava-se no sofá cinza. Mas, tudo, ainda, eram paredes branco-gelo. Eram só elas duas, mãe e bebê. Acordavam, se alimentavam, dormiam, acordavam, se alimentavam, defecavam, babavam, urinavam, sujavam-se de leite materno, vomitavam, vez ou outra não tomavam banho mesmo depois de tanto excremento. Os dejetos compunham também o cheiro daqueles corpos. As fezes do bebê existiam por si mesmas: elas eram notadas pelo nariz da mãe, como se gritassem seu próprio nascimento. A urina, mais tímida, aguardava ser notada depois. Os vômitos eram triviais, coisa, assim, normal, ganharam até o apelido de golfo. Lágrimas nem sempre cruzam a fronteira, muitas ficavam represadas ainda dentro dos olhos, mas, antes de sufocarem a visão, saem pela boca. Outro canto. Muitos cantos. Todos os dias muitos cantos.
À noite, as paredes se acinzentavam, a rede continuava amarela, o sofá cinza, sono, leite, choro, despertar, fezes, urinas, fraldas, lágrimas, música. Mas, a noite guardava uma luta corporal: os braços, pernas, pés, as costas, o rosto, a cabeça, tudo o que é carne, músculo e entranha pedia para descansar. Tudo queria parar.
Ficar preto, se largar no inconsciente para ver as flores que ainda eram coloridas fora das paredes branco-gelo, ter conversas sem som, viajar para outros lugares. Tudo queria apenas não ser carne, músculo e entranha a noite.
Tudo queria ser só um amontoado em cima de qualquer superfície plana. Quando o relógio marcava oito da noite já era impossível apaziguar o conflito. Não era possível dormir, tampouco sonhar, era preciso estar sempre atenta, de hora em hora tudo se acenderia, mesmo no breu, para amamentar, ninar, cantar.
Às três da manhã, os cantos são apenas melodias, perderam as letras às duas e às quatro soarão já como qualquer coisa pouco ritmada. Mas, os cantos continuam doces. Onde ficou o café?
Aquela água quente, fervida, coada, passada em pó amargo, toda ela estava represada em algum lugar antes do olho que vai inundando a cabeça.
Uma hora, a mulher que não chora, só bebe café para aguentar as noites de muito sono e pouco descanso, de muitos medos e poucas certezas, muitas dúvidas, muita vontade de conseguir ficar acordada sem que doesse tanto fisicamente, tudo isso escoa. A mulher escoa – ou é escoada para algum lugar longe de si.
Lembro quando ela me disse que, à noite, sentia muito medo da presença de um espírito. Me arrepia só de contar. Uma presença parecia vir da sala, espreitar o outro quarto e a sombra do portal era quase a silhueta de algo que jamais pôde encarar. Não era sequer preciso ver. Os olhos, como muralhas de sustentação daquela represa, já não tinham qualquer serventia. Era com o restante do corpo, vísceras, músculos, carne, era com os poros e pelos arrepiados, com a espinha gelada, quase branco-gelo. Não sobrando lucidez aos olhos, era com a nuca retraída e o pescoço baixo que ela sentia medo. Não via, sentia. Excorporou. Excorporou a represa. Cantava o pai-nosso, cantava a ave-maria. Mas, aquele canto cantava de volta, tinha algo a dizer. A loucura sempre tem.
Anos depois, nos encontramos em um quarto escuro, como era aquele, cheio de sombras nos portais, como eram aquelas, em volta de paredes branco-gelo, muito parecidas – mas, a essa altura, as paredes já tinham os rabiscos do bebê que cresceu. Perguntei-a sobre os espíritos e ela sorriu. Não tem música, nem reza para eles. Foi ela quem ouviu seus cantos – desses seres que também foram um pouco seus filhos, que pariu pelo corpo por não conseguir parir algumas palavras com a própria boca.
De tanto não querer poder dizer que era fraca, de tanta solidão naquela dor, de tanta exaustão naquele labirinto que parecia não acabar, ela criou um fantasma – ou lhe deu espaço, não sei, mas parece que algo precisava lhe acompanhar.
Ah, mas agora, ela diz com a boa cheia, quase com orgulho, uma vitória: vou descansar. As paredes riscadas são uma das marcas do seu exorcismo. Não tem gerenciado represas, pelo visto, mudou de ramo. Já não vê apenas os cantos, ocupa o chão, o teto, a rua, o espaço, ocupa os outros com seus problemas, ocupa o dia com suas tarefas e com seus prazeres pequenos.
Diz que tirou as teias de aranha da parede, mas pude ver pelo menos duas ou três. Percebi que a costura entre ela e o bebê está muito bonita, não é mais ponto-cruz, é bordada, cabe até remendos, desenhos, estampas. Há um tecido bonito ali, com manchas de suco, xixi, caneta colorida. Há, ainda, as formigas andando no chão. Elas permaneceram, como os cantos. Os cantos mudaram, mas ainda são doces. Ela escreveu no espelho: viver não é suportar. O canto agora é alto, grita solto que quer viver. E viver é melhor que sonhar.
Revisão: Joana Oughdoud