“Verdadeiras fortalezas podem ser considerados os ninhos das formigas cortadeiras, em especial as saúvas. Elas constroem ninhos complexos, subterrâneos e com câmeras especializadas, também chamadas de panelas. […] a escavação do ninho exige um trabalho coordenado, com um considerável custo energético. Entretanto, esta energia dispendida, traz muitos benefícios para a colônia. Entre esses benefícios estão à proteção contra predadores, regulação de umidade e temperatura que são essenciais para a manutenção do fungo simbionte, e consequentemente para todos os membros do formigueiro. É nas “panelas” que acontece a preparação do alimento, isto é, a incorporação das folhas ao jardim de fungo e a deposição do lixo produzido pela colônia, que é composto de formigas mortas, fungo exaurido e material vegetal em decomposição. Também existem câmeras vazias, como cômodos de reserva.”
O universo tecido pelas crianças é quase tão pouco notado quanto os notáveis feitos arquitetônicos e comunitários das formigas. Escavações, fluxos de trabalho, organizações coletivas de famílias, papéis sociais, combinados, subversões, resistências. Formigas são notadas quando interrompem o fluxo ordinário da vida, reconduzidas de modo que deixem de incomodar e de obstruir o caminho. Falo das formigas?
Nunca gostei de matar formigas. Quando era pequena, uma prima percebeu esses ares compassivos e, para chamar minha atenção, matava as formigas que passavam por mim – mais de uma vez chorei por isso. Há pouco tempo, morei em uma casa em que havia muitas formigas, das jardineiras, grandes, e busquei viver com elas (afinal, os invasores éramos nós), conversei, depois passei a varrê-las de dentro de casa mas, quando começaram a fazer ninhos e colocar ovos e larvas nas gavetas, não escapei: passei a matá-las sempre que as encontrava. Nunca foi fácil, eu evitava essa prática quando minhas filhas estavam por perto. Um dia, apareceram no andar de cima, no quarto em que as duas dormiam, então peguei um sapato e comecei a matança. Minha filha mais velha, Aurora, disse: “Mamãe, você está matando.” – o que já merece um marcador, porque o estranhamento diante da injustiça é crucial – ao que respondi: “Filha, é o quarto em que vocês dormem, não quero deixar que elas façam nenhum ninho aqui…” – hábeis que somos para dar explicações razoáveis –, ao que ela retruca: “Mamãe, vida de formiga não é fácil, né?”. Dei toda a razão a ela.
quem tem consciência para ter coragem
quem tem a força de saber que existe
e no centro da própria engrenagem
inventa a contra-mola que resiste
(João Apolinário, 1973)
Adultos que se acostumaram com a ideia de que sustentam a máquina do mundo a todo vapor tomam para si a convicção de que devem educar suas filhas e filhos de modo a adaptá-los e afastar qualquer conduta, pensamento, modo de vida que resista às engrenagens ou que ponha em cheque o que as sustenta. Por aqui, não obstante o esforço de quem se atreveu a cultivar as infâncias, escorregar nas armadilhas do tempo ocidental e deixar-se sequestrar pelas narrativas colonizadoras está sempre à espreita. Esses dias, durante o ritual de dormir, Aurora deixou-se impressionar pelo fogo e chamou minha atenção: “Olha a dança da vela!”. Eu insisti para que ela se deitasse por já estar avançada a hora da irmã menor, que não dormira à tarde. Joguei areia – água no formigueiro. Tento ressoar os encantamentos da vida que transborda, oferecendo-os para as crianças e celebrando os que elas mesmas fazem notar, mas nosso corpo parece que vai endurecendo a cada dia que passamos nessa cultura adultizada, racional, razoável, produtiva.
Para lidar com as crianças sem esmagar o mundo novo que trazem consigo, em que escola deveríamos, nós, estudar? Que formação para aprender a sustentar a interrupção? Que especialização para entender que não são pedras no caminho mas, sim, a possibilidade urgente de outras veredas. Não é banal segurar, como na música, a primavera entre os dentes.
Élida Santos Ribeiro





