Mulheres-mães protagonistas da própria história

Hora da Partida

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Olho para os lados e vejo que as mães das minhas amigas estão partindo, deixando este mundo tal o conhecemos. Estão uma a uma, caindo como peças de um tabuleiro de xadrez. Em cada um destes eventos fico triste e penso: a hora de todas está chegando, inclusive a dela, da minha mãe.

A imagem dessas perdas me fazem entrar em contato com a dor que se avizinha, dá sinais de sua  chegada.

Num vaivém de sentimentos ambivalentes ora penso que ela merece este descanso, pois já percorreu uma grande jornada, ora fico com o coração apertado por saber que logo não a terei mais por perto.

Procuro a minha genitora, minha mãe, mas ela parece não mais habitar aquele corpo;  corpo este já sem forças, gasto pelas dores sofridas, gasto pelo tempo, quase sem vida. Vida vivida e consumida em 92 anos de muitas alegrias, também, que foram sendo acumuladas no nascimento, nas conquistas e nas realizações de seus filhos acrescidas pela chegada de netos e bisnetos. Com orgulho, gosta de contar a todos que tem 05 (cinco) filhos, 17 (dezessete) netos e 14 (catorze) bisnetos.

Sinto uma imensa sensação de incapacidade, não sei se conseguirei dar conta  deste  sentimento que me mobiliza neste momento na certeza da ausência, da separação pela morte. Muitas vezes, quando escuto o som de pés se arrastando por entre os diversos cômodos da minha casa, sinto tristeza por saber que a hora da despedida se aproxima.

Não consigo encontrar minha mãe entre as rugas e flacidez daquela senhora decrépita. Aquela não é a mãe da minha infância, tampouco da minha adolescência e vida adulta. Não é a pessoa com quem eu contava sempre que precisasse.

Como não percebi isso a mais tempo? Quem a aprisionou neste corpo já gasto? Procuro a mulher de cabelos negros ondulados, olhos vivazes, personalidade forte, pessoa determinada, curiosa, ativa e a frente de seu tempo e não consigo encontrar. 

A imagem que guardo dela é de cabelos arrumados com cuidado e esmero, saia pregueada estampada, blusa branca, sentada com seus cinco filhos pequenos e meu pai em uma mesa, imagino ser de um restaurante.

Onde ela se escondeu? Ou a esconderam? E a mulher idosa que vejo na minha casa, quando se mudou para lá? Porque usa o quarto, as roupas, a atenção e o amor que seriam da minha mãe? Com que direito? 

Como não percebi a forma sorrateira pela qual foi se apropriando da vida da minha mãe e ocupando espaço na minha vida e na de meus irmãos a tal ponto que fomos esquecendo da mãe forte, cuidadora e presente que tínhamos para termos de cuidar dessa senhora de idade avançada que precisa ser alimentada e acariciada.

Quem é aquela idosa que transita e geme deixando sinais e marcas nas paredes não só da minha casa, mas no meu corpo e alma. Sinto uma dor inominada, um sentimento de vazio, uma sensação de perda, da ausência de alguém que já partiu mesmo não tendo experimentado a morte. Perda de algo que não vivi, mas já pressinto mesmo sem entender muito bem essa impermanência. 

Comecei a me irritar com ela, a dizer que não apertasse a torneira, que não usasse a pia do lavabo para escovar os dentes e outras tantas cobranças na vã tentativa de com isso poder resgatar minha mãe. Foi tudo apenas uma forma de me iludir e de não querer ver a realidade assim como ela se apresentava.

Percebo que o corpo que abduziu minha mãe e a escondeu em algum lugar está dando sinais claros que está chegando ao fim. Ele oscila feito uma vela ao vento, trepida, vai de um lado ao outro sem nenhum equilíbrio ou senso de direção. Dá sinais claros da finitude de tudo, tanto da vela como do homem.  Vejo a vela se apagando aos poucos até que em dado momento, sem que tenhamos consciência disto, apagará sua chama de forma derradeira. 

É dessa forma que tenho vivenciado a partida da minha mãe como o fora da mãe dela aos poucos, de forma lenta e sem que eu possa nada fazer, apenas aceitar a minha impotência.

Aquele é um corpo que pede passagem, é um corpo que diz que está cansado e precisa ir embora, seu tempo chega ao final. Sem pronunciar uma palavra, dá demonstrações claras de sua ruptura com a vida, diz já se encontrar em outro lugar o qual nos atrevemos a classificar como decrepitude.  

Viveu rodeada de afetos, de familiares e de amigos.  Agora, se reduziram a poucas pessoas. Foram se escasseando, diminuindo na mesma proporção da passagem do tempo. Primeiro sua mãe, seu marido, irmãos, cunhados, sobrinhos, neto. Vínculos foram rompidos pela morte, pela distância ou pela não presença. Será que em suas memórias essas pessoas ainda estão presentes?

Vejo um fio de vida naquele corpo desgastado, um rosto cheio de sulcos e rugas de expressão, misto de saudades e tristezas a pedir permissão para também partir. Fico a me perguntar se ela sabe para onde está indo, se sentimentos e emoções estão a povoar seus pensamentos ou apenas encontra-se no vazio existencial. 

E nós, todas as mulheres da minha linhagem em que me incluo, mulheres destemidas, sempre enfrentamos o desconhecido, sem medo de encará-lo e, agora, experimento o medo de encarar o que está por vir, porém, acredito na capacidade de tratar das feridas e cicatrizar minhas dores.  

A roda da vida é a mesma roda da morte e gira sem parar. Chegar e partir fazem parte do mesmo ciclo. Esse é o grande paradoxo da existência. 


Texto: Sandra Eliane Radin, escritora, pedagoga, coaching, estudiosa da Psicologia Analítica do Feminino e do comportamento humano; autora da Velha Sábia e eu: atmosfera feminina. Instagram: @sandra.radin.3. facebook Sandra Radin. www.sandraelianeradin.com.br


Revisado por Daiane Martins.

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