Cuidar é política: ciência sobre o maternar

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Pergunto:

O trabalho afetivo te afeta?

Ele tentava passar a mão pequenininha no meu rosto

quando ainda aprendia a coordenar os dedos.

Observei o milagre da repetição:

a cada dia, um gesto novo.

O movimento desajeitado virava toque,

o olhar curioso virava encontro,

e o tempo, entre nós,

se revelava outro —

um tempo que não cabe no relógio,

mas no ritmo do crescimento,

do vínculo,

do aprendizado.

Descobri que a covinha do seu sorriso só existe porque houve cuidado,

que o universo da sua mãozinha se abriu

porque houve noites sem sono.

O desenvolvimento dele era também o meu aprendizado:

uma ciência feita de observação, paciência, escuta

e muitas vezes toda luta de um mundo velho a ruir.

Pensei: tudo isso não é ciência?

Por essa razão mais uma vez pergunto: o trabalho afetivo te afeta?

Porque o trabalho afetivo é uma ciência poética,

uma forma de ler o mundo

e reparar a história

de quem foi negada como sujeito

e como criadora de conhecimento.

Parei para amamentar enquanto escrevia.

Mais uma vez,

o encontro com a dor e o sussurro.

Amamentar outro ser humano

é uma das tarefas mais invisíveis do cuidado:

romantizada, desvalorizada,

vista como obrigação natural,

quando é também resistência e um limbo social.

Aguentar tanta dor, te afeta?

Calcular, entre lágrimas,

se as sucções foram suficientes,

é trabalho afetivo e te afeta?

Cada sinapse que se forma

nesse pequeno corpo

depende desse labor que transparece

e dura vinte e quatro horas.

E quando a conexão não vinha?

Quando a raiva chegava,

quando o corpo servia outro ser

e, ainda assim, era meu?

Também era trabalho afetivo?

Celebrar o fim da amamentação

é reconhecer que resistir também é ciência.

É compreender que o leite que seca

não apaga o vínculo —

só o transforma

e quando ele nunca veio — o leite e o vínculo

também foi afetuoso e árduo o trabalho daquela mãe

Entre mamadas e aulas,

entre o leite e o giz,

descobri que o cuidado atravessa tudo.

A maternidade e o trabalho docente

se misturam como territórios de afeto e política.

Pensei nas engrenagens que sustentam —

e exploram —

o trabalho do cuidado.

Nos custos emocionais

que os homens quase nunca pagam.

Percebi que calcular o desejo de fugir

também é um trabalho intelectual pesado que carregamos:

um exercício de consciência e humanidade.

Criar um filho numa sociedade machista e racista

é trabalho afetivo que carregam mulheres

com histórias diferentes das minhas

e mesmo assim estou aqui para irmos juntas

romper com essas estruturas

desde a infância

é talvez o mais árduo dos trabalhos.

A educação respeitosa

A não-violência

A não reprodução de padrões

é ciência poética aplicada ao cotidiano para combater o patriarcado.

O tempo da criança —

esse tempo lento, minucioso —

é revolucionário.

Enquanto ela descobre o próprio pé,

eu aprendo a desacelerar o mundo.

Enquanto ela descobre o som do meu riso,

eu reaprendo o significado de existir.

O tempo da infância é subversivo:

resiste à lógica da produtividade.

Ensina que o detalhe é essencial,

que aprender a sorrir

é tão complexo quanto resolver uma equação,

que descobrir o próprio nome

é tão grandioso quanto decifrar uma fórmula.

A criança descobre o que é um cachorro

com a curiosidade de quem inventa uma vacina.

E ela descobre porque o trabalho do cuidado está ali,

sustentando o invisível que faz o visível acontecer.

Até o paladar é atravessado pelo trabalho afetivo.

Não é sobre mais ou menos amor —

é sobre a lógica do amor.

Uma lógica que não cabe na métrica da eficiência,

mas na delicadeza da atenção.

Cuidar é produzir conhecimento.

É experimentar, errar, corrigir, observar, recomeçar.

É ciência cotidiana,

radical e viva.

Cuidar é fazer política.

É produzir ciência que nasce da carne,

não apenas dos laboratórios.

É compreender que o humano

é feito de vínculo,

e que a pedagogia do afeto

é também uma teoria do conhecimento.

Pesquisar é cuidar de mim.

Porque não há separação

entre o que vivo

e o que penso.

Toda vez que escrevo sobre o cuidado,

escrevo sobre minha história.

E toda vez que escrevo minha história,

percebo que escrever

é o próprio gesto de cuidar.

Sem fazer barulho,

aprendo o passo exato

que não acorda a criança —

um saber que não cabe nos manuais.

Escuto o balbucio,

antevejo o choro,

sinto o ardor antes do toque.

Calculo quantas mamadas

ainda consigo dar antes de sangrar.

E isso não é ciência?

Na madrugada, pergunto ao escuro:

o trabalho afetivo te afeta?

é ciência?

é poesia?

ou é só dor?

Antes dele, eu escrevia poesia.

Produzia ciência.

E depois da maternidade?

Descobri que o que não cabe na ciência,

nem na poesia,

nem na política,

é exatamente o que move o mundo.

O leite que alimenta,

o cálculo do tempo,

o corpo que se divide,

o amor que resiste —

tudo isso é ciência poética.

E tudo isso é política.

O cuidado é a tecnologia mais antiga da humanidade,

e também a mais invisibilizada.

É a base sobre a qual o mundo se ergue,

e, ainda assim,

a que mais tentam negar.

O trabalho afetivo é o que nos humaniza,

costura o tecido social,

sustenta a infância,

as escolas,

as comunidades.

É a forma ancestral

herdada das mulheres que vieram antes —

as que, sem reconhecimento,

fizeram o mundo continuar girando.

Na maternidade, entendi:

cuidar é política de reparação.

É devolver ao corpo sua dignidade,

ao afeto seu valor epistemológico,

à experiência seu estatuto de saber.

É ciência que não separa

razão e emoção,

corpo e mente,

sujeito e objeto.

Uma ciência encarnada,

feita de leite, lágrimas e pensamento.

Cuidar é gesto que atravessa o tempo,

epistemologia que nasce da prática,

política que começa no cotidiano.

E é também poesia —

porque só a linguagem

traduz o invisível.

Cuidar é política.

E o trabalho afetivo —

esse labor silencioso e infindável —

é a forma mais profunda

de produção de mundo

que já inventamos,

ele afeta

e não só cabe

mas ele é a ciência.

Por Daniele Rehling Lopes – @escritafeminista – @danielerehling

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