Coluna – LADY BIRD: É preciso voar para retornar

Saoirse Ronan Beanie Feldstein Lady Bird Zoom 1024x705

Quem, no mundo, melhor te conhece? Quem sabe como você gosta do seu café, do seu pão, do que você tem medo e o que te faz feliz? Quem olha para você, inteira, e te conhece dos pés a cabeça, inteirinha, talvez até aquilo que nem você sabe de si mesma?

Outro dia contei a minha filha que ela, na verdade, gosta muito de alho, embora não saiba. Mea culpa! Desde a papinha eu sempre temperei a comida dela com alho, que era para ter certeza que esse tempero não seria um problema, já que eu gosto muito. E essa não é a única coisa de que ela gosta e não sabe, mas eu sei. Assim como tenho certeza de que ela não percebe uma série de coisas sobre si mesma, manias, gostos, características bem particulares que eu sei que a constituem enquanto um ser único. Seja por um enorme senso de responsabilidade, seja por conta desse amor que brota diariamente e nos faz olhar para esses “serezinhos” como se fossem os indivíduos mais importantes da espécie humana, o fato é que nossa atenção se volta para os filhos de formas, às vezes, até difíceis de explicar.

Mas o quanto dessa atenção materna pode se converter em implicância? Em um tipo de cuidado que pode sufocar, bloquear o desenvolvimento pleno e, até, criar barreiras entre mãe e filhos?

Quando vi alguns cortes do filme Lady Bird nas redes sociais, eu tive a nítida impressão de que a filha, que se autorrenomeou de Lady Bird, vivia uma relação abusiva com a mãe. Essas cenas, que chegavam ao meu feed recortadas de dentro da narrativa, eram momentos em que a garota demonstrava sentir-se menosprezada e julgada pela mãe. Momentos em que a mãe parecia incapaz de uma palavra positiva para a filha. Eu fiquei interessada pelo filme, mas quando assisti percebi que não era bem essa a situação. Muito curioso como o contexto faz toda diferença, às vezes.

De fato, temos uma mãe que encontra dificuldades em se comunicar com a filha em uma linguagem que chamamos de comunicação não violenta, de disciplina positiva ou algo assim. Ainda muito ligada a um modelo de educação que entende ser função dos pais apontar erros dos filhos e direcionar suas ações, a mãe fala coisas a filha que parecem dizer que a garota não é suficiente. Mas em tudo que essa mãe faz, há uma atenção visceral com relação a essa filha. Todos os passos da garota são avaliados e ela tenta interferir para, nas palavras dela mesma, fazer com a filha “seja a melhor versão de si mesma”. O problema é que a garota, nessa dinâmica, sente-se sempre insuficiente e incapaz de atingir esse ideal de pessoa que a mãe parece esperar que ela seja.

Por outro lado, ao assistir ao filme todo (não apenas os cortes), é possível perceber o quanto, realmente, a garota precisa de atenção, e de orientação. Lady Bird é uma garota que quer voar para fora e para longe do ninho. O mais longe possível. Mas, claramente, suas asas ainda não estão prontas. Perdida entre a ambição por uma vida que está fora de seu alcance e as dúvidas e decepções inerentes a essa fase da vida de qualquer jovem, ela tem atitudes bastante questionáveis e antiéticas para alcançar seus objetivos.

A chave para entender a mãe, me parece estar numa fala muito curta dela, em que diz a filha (que perguntava se ela mesma nunca tinha desapontado a mãe ao deixar roupas espalhadas no quarto, sem arrumar antes de dormir) que a sua mãe era alcoólatra e ausente. Para essa mulher, estar presente, observar a filha de perto e apontar sempre que entendesse que havia algo a ser corrigido no comportamento da garota era a maior prova de amor materno que podia imaginar. Dar a filha a atenção e cuidado que ela, aparentemente, não teve.

Cristina, a Lady Bird, quer sair de Sacramento quanto antes, e ir para bem longe. Ela julga detestar o lugar onde vive, a vida que tem. Mas é confrontada pela orientadora da escola, que diz que, em sua carta de apresentação (ela busca vagas em diversas universidades nos EUA), ela demonstra amar Sacramento e a escola em que estuda, já que descreve tudo em detalhes. Quando Cristina diz que apenas prestava atenção no lugar, a orientadora responde: “e a atenção não é uma forma de amor?”

Para mim, certamente é.

O fato é que, ao estar longe de tudo que ela julgava odiar: Sacramento, a escola, a família e a casa da qual ela tem vergonha, Cristina se reencontra e percebe que sua relação com aquele lugar e aquela vida, não era bem o que ela julgava ser.

Serviço:

Lady Bird. A hora de voar. 2018. Diretora Greta Gerwig (indicada ao Oscar). Disponível na Netflix

Autor

  • Regina Miranda

    Regina Miranda é autora de três livros publicados com a editora Caravana, sendo um deles o infantil "O sabor das coisas", cuja história foi co-criada com a filha, de cinco anos na época. Também participa de coletâneas como com o Selo OfFlip, e publicações em revistas digitais, como a Revista Intransitiva. Apaixonada pelo universo da literatura, é formada em Letras pela UFPR com especialização em Educação a Distância pelo Senac. Já foi professora no ensino fundamental e, hoje, leciona aulas particulares de produção de texto, além de participar da organização do Clube de Leitura Feminista em Curitiba, onde mora atualmente. Divulga seus trabalhos literários e reflexões diversas pelo perfil de Instagram @reginaliber2020

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