Coluna – O dia em que não me senti mais só

Coluna – O dia em que não me senti mais só

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A maternidade de modo geral tende a peneirar em finos grãos, as amizades que irão partilhar de glórias e perrengues, com o passar dos anos. Na maternidade atípica, esse filtro parece não só selecionar quem fica em nossas vidas, como também joga pra bem longe quem não é mais compatível com quem você se torna. Isso porque o cansaço físico e mental acumulados nos coloca numa indisposição de ser a pessoa que, ainda com toda essa carga, se justifica e se empenha em buscar colo em companhias para desanuviar os pesos. O trabalho que dá “correr atrás” de tudo isso, a gente só percebe quando tem uma pessoinha pra acolher, criar, educar, decifrar, estimular, com todas as suas particularidades.

Quando abandonamos o lugar de fomentadora de encontros que cultivam a presença dessas amizades, curiosamente, abre-se uma lacuna que, em princípio, chamamos de solidão. Uma sensação de não ter mais aquelas pessoas que você amava conversar por horas e horas. De repente, não tem mais as pessoas, nem tempo, nem vontade de conversar com elas. Você mudou. Tudo mudou. A sua realidade se tornou cansativa pra você, e mais ainda pra quem escuta seus lamentos. O que sobrou? A terapia? Essa, sempre muito bem-vinda para o psicológico e emocional em frangalhos, segue firme, graças a Deus.

E por falar em Deus, que bom que existe a espiritualidade. Foi ela quem me segurou todas as vezes que me vi sem chão. Acredito que é a partir daqui que as coisas começam a ganhar um novo sentido. A fé em algo maior me trouxe respostas a partir de uma reconexão comigo mesma. Com quem já fui, mas, sobretudo, com quem me tornei. É bem aqui que deixo de me sentir sozinha. Quando lembro que não posso abandonar a mim mesma, nem os meus sonhos. Que ainda em meio a missão do maternar, ainda sou gente viva, muito viva. E tem sido a nutrição desse potinho de autoamor, que tem me aberto para o que naturalmente vem ao meu encontro, sem esforços. Sem implorar afeto, sem ultrapassar meus próprios limites. Reconhecendo quanta força existe em cada pequena coisa que decido movimentar, pra além das obrigações.

Em pouco tempo, a solidão veio se transformando em complementaridade; pois já não tiro de onde não tem para me doar completamente. Consciente do que já carrego, recebo o que vem por livre e espontâneo desejo, como também me retiro, me recuso ao que não dá paz ao coração. Ao passo que venho partilhando nas redes sobre meus aprendizados enquanto mãe de uma criança surda, novas pessoas têm se achegado. Pessoas que trazem uma infinidade de possibilidades que fogem à percepção padrão – ouvinte – limitada a uma única forma de comunicação.

Aprender Libras tem mudado minha forma de enxergar o mundo. É como aprender a ler. Impossível não observar quando expressões faciais dizem muito mais do que uma boca falando. Imergir na comunidade surda, sair com amigos surdos, tem preenchido vazios que eu nem sabia que tinha; porque com eles, nada está em “falta”. A comunicação acontece na inteireza de cada um, ainda que haja sinais desconhecidos para mim. Esse contato parece diminuir abismos. Me faz vislumbrar um futuro mais generoso para meu filho, começando em casa, com um vínculo fortalecido por uma boa comunicação entre nós.

Não sei explicar a minha alegria quando vi que em minha nova equipe de trabalho contava com um estagiário surdo. De repente, ele ganhou uma pessoa para conversar em Libras e, de brinde, a equipe ganhou uma intérprete. De repente, a minha vivência de mãe de uma criança surda não é um estorvo, mas sim algo a ser valorizado. Nesses giros mágicos da vida, não posso ignorar que a espiritualidade vem cuidando de tudo. Entre perdas, frustrações e rupturas, há sempre algo novo rachando o asfalto; e que só iremos compreender depois.

Foto: Larissa Morena

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