Essa pergunta é tão importante que me motivou no desenvolvimento de uma pesquisa há alguns anos atrás, quando atuei na UTI Adulto do Hospital São Paulo. Por tratar-se de uma UTI Geral, recebíamos paciente com os mais diversos quadros clínicos e cirúrgicos; mas ali, o paciente não era apenas nosso paciente, ele era mãe, pai, irmão ou irmã, avô ou avó de alguém. Haviam casos em que o tempo de internação se prolongava ou coincidia no tempo de fim de vida.
Acontecia, em algumas situações, de haver uma criança com vínculo afetivo ou de cuidado importante com o familiar hospitalizado e, nesse contexto, não raro eu era questionada enquanto psicóloga a opinar se uma visita ao familiar que estava na UTI poderia vir a traumatizar a criança.
Sobre esse questionamento, eu devolvia outro: qual é a sua preocupação? E a partir dessa pergunta, eu me punha a ouvir os diversos relatos de medo que a criança ‘visse demais’, que ficasse ‘impressionada’ com os equipamentos da UTI ou que ‘não reconhecesse seu familiar devido ao tempo em que estavam separados’.
Compreendi que, se por um lado os pais ou responsáveis das crianças se preocupavam com o que elas veriam ou viveriam visitando seu familiar na UTI; por outro lado, preocupavam-se em privar essas mesmas crianças de mais tempo de convívio. Eram frequentes os relatos de sintomas (enurese noturna – perda involuntária de urina durante o sono -, pesadelos, piora no desempenho escolar, agressividade e distração).
Ainda que muitos fatores possam estar na causa do aparecimento desses sintomas e não possamos atribuí-la ao evento de hospitalização de forma direta, havia a percepção dos pais e responsáveis de que o início se relacionava de algum modo ao momento de internação do familiar que se encontrava na UTI, ainda que de forma pouco clara.
A partir desse contexto, e ouvindo também a equipe de saúde que se questionava sobre a melhor conduta a ser tomada com objetivo de proteger a criança, busquei em autores da psicanálise recursos para compreender o que se passava ali. Para o criador da psicanálise, Freud, o trauma se refere a um excesso sem possibilidade de simbolização; já a psicanalista Françoise Dolto acreditava que tudo poderia ser dito à criança, mas não de qualquer jeito. Esse dois autores me permitiram ter base científica para afirmar que a fala é um tratamento possível para o que ainda não foi simbolizado.
Assim, minha atuação tomou o cuidado de escutar que pedido era esse vindo dos pais ou responsáveis pela criança, quais as implicações e questões envolvidas e imaginadas. Para isso, eu precisei ouvi-los sem pré-julgamentos. Em seguida, eu precisava ouvir o paciente, quando possível, para que ele pudesse dizer se gostaria de receber essa visita e o que isso significava para ele.
Por fim, a criança era escutada por mim, depois de entendido o pedido dos pais e a receptividade do paciente, para escutar da própria criança como ela estava participando de tudo aquilo, sobre quem era o familiar para essa criança e sobre o que esperar no momento da visita.
A equipe de saúde intensiva, sempre muito colaborativa, fazia as considerações acerca dos critérios de segurança para preservar paciente e criança e confiavam quando eu dizia que falar com a criança é um tratamento para o silêncio de velamento e para o não dito, uma espécie de tabu que se instalava em algumas famílias e sobre o qual a criança, por vezes, reagia apresentando sintomas.
É importante dizer que no Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal 8.069 de 1990, não há nenhum parágrafo restringindo a visita de crianças a seu familiar hospitalizado, ao contrário, o favorecimento ao convívio e fortalecimento de vínculo familiar é um ponto central nesta lei.
Portanto, acredito que falar é um tratamento para o sofrimento, para o vivido e o por viver. Não falar sobre determinado assunto pode dar espaço para que fantasias negativas e sem conexão com a realidade surjam, mesmo quando a realidade é difícil, falando podemos encontrar formar melhores de lidar com o cada experiência.
Cabe dizer que algumas visitas não foram realizadas, em função de uma contra-indicação profissional minha e, mesmo nesses casos, houve ampla escuta de cada pessoa envolvida e orientação aos pais ou responsáveis pela criança e familiares do paciente. E independentemente da realização da visita ou não, falar com a criança é transformador e escutá-la é um cuidado em saúde mental.