Por Betzaida Mata
Antônio Cândido, ao defender o direito à literatura como um direito humano, fala do seu caráter incerto, poderoso e dinâmico. Para ele, a literatura “confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate (…)”.
Não é, portanto, uma ciência exata, menos ainda um lugar seguro. Sem ela, porém, não há processo de humanização possível. Porque humanizar-se também é isso: lidar com as incertezas, as precariedades e as contradições da nossa condição.
E a literatura infantil?
Se é literatura, penso eu, ela também deveria se abrir ao incerto, ao ambíguo, àquilo que o olhar convencional não quer aceitar. E crianças têm capacidade para lidar com algo tão complexo? Têm, têm sim. E os escritores que compreendem isso conseguem escrever livros infantis que são, de fato, literatura. Contam histórias que respeitam a inteligência da criança, que consideram suas dúvidas e despertam o seu olhar.
São livros que têm força suficiente para, como defendeu Antônio Cândido, desenvolver nos pequenos leitores uma “quota de humanidade”, uma “maior compreensão e abertura à natureza, à sociedade e ao semelhante”.
Muitas vezes, porém, não são esses os livros que caem no gosto das famílias, das escolas e das editoras. Existe, nesses espaços, uma percepção de que o sentido da literatura infantil só existe em função de algo externo a ela própria.
Nas escolas, por exemplo, quando se vai justificar a adoção de um livro, costumam dizer coisas como “o livro serve para trabalhar valores”, “o livro ajuda a desenvolver a percepção espaço-temporal.”
Há uma coleção voltada para as crianças, por exemplo, em que a lista dos “valores trabalhados” já vem estampada na contracapa de cada obra.
Isso sem falar na enxurrada de livros infantis rasos, sem criatividade e com conteúdo altamente moralista. Há também aquelas obras que são tão preocupadas em ensinar alguma coisa que acabam ficando com um jeito de livro paradidático.
E qual o problema disso? O problema é que literatura infantil é – ou ao menos deveria ser – literatura. E literatura é arte, não é manual de boas maneiras tampouco recurso paradidático. Em outras palavras: não é obrigada a transmitir lição alguma.
A importância da literatura em nossa vida está em outro lugar. Ela nos desperta para aquilo que não queremos enxergar, aguça nossa sensibilidade e permite que enxerguemos as pessoas e situações para além do binarismo bem e mal. Por isso, ela é tão importante, por isso tem o potencial de nos humanizar.
Querer dar à literatura infantil qualquer finalidade que não seja a sua própria fruição é o mesmo que matá-la. Não façam isso, por favor. Não vamos impor às crianças mais essa privação.