Antes de eu nascer, minha mãe tomou um susto. Foi quando ela descobriu que estava grávida. Eu tinha apenas cinco semanas de vida. Nós nos apresentamos um ao outro por meio de um teste de farmácia, de R$5. Desacreditada com o resultado, ela resolveu fazer um exame de sangue. Não havia dúvidas! Em nove meses, eu estaria aqui neste mundo, chorando sem parar.
Nesses meses que nos separavam aqui do lado de fora, minha mãe fez todos os cursos possíveis e imagináveis. Sobre parto, amamentação, como dar banho no bebê, como usar um sling. As mudanças causadas no corpo, as futuras mudanças que viriam na relação com meu pai, a revolução na família inteira.
Leu também todos os livros que pôde, sobre sono, cólicas, introdução alimentar, estímulos para desenvolver a criança em cada fase. Devorou página por página com atenção e curiosidade, segurando-se quase sempre para não dormir, pois o sono não lhe faltou durante a gestação – parece que até hoje ainda não se recuperou.
Cada integrante da família soube da novidade de um jeito diferente. A mãe dela (minha vovó) ficou sabendo no meio de uma discussão. O pai (o vovô), num café dentro do shopping. Ela disse que tinha uma novidade para contar, e ele acertou de primeira! O restante da família da mamãe soube num almoço de domingo, que teve um tom tão solene que parecia uma tragédia a ser anunciada. E o lado do papai tomou ciência da minha vinda no meio de uma rodada de pizza, pegando a todos de surpresa.
Mamãe resolveu, finalmente, oficializar o namoro de seis anos, casou-se no cartório, chamou a família e os amigos mais próximos. Ofereceu uma feijoada em casa para comemorar a nova etapa, já com um barrigão. Fez também duas sessões de fotos para guardar esse momento para sempre na memória: uma na praia e a outra num parque rodeado de árvores e animais silvestres.
Três semanas antes de eu estrear neste mundo, minha mãe surtou. Achou que iria morrer no parto. Foi atrás de uma psicóloga especializada em grávidas. Fez três sessões de terapia. A profissional tentou convencê-la de que daria tudo certo, de que ela não morreria na sala de parto. Mas que renasceria. Porque nenhuma mãe tem um filho e volta a ser o que era antes.
Faltando apenas uma semana para eu chegar, ela e o papai arrumaram as malas, buscaram a vovó e partiram rumo a Santa Catarina, numa viagem de carro de mais de 500 quilômetros. Tudo para eu nascer numa maternidade melhor, numa cidade onde o plano de saúde nos atenderia. Chegamos bem, deu tempo de organizar um lindo chá de bebê para toda a família e os amigos da mamãe, e um dia depois começaram as contrações.
Elas duraram dois dias. Mamãe e papai foram fazer o último curso de gestantes, já no hospital onde eu nasceria. E, bem quando o médico explicava como era entrar em trabalho de parto, ela percebeu que estava sentindo exatamente o que via na tela. Pediu ao papai para baixar um aplicativo com contador de contrações, e deu que era isso mesmo!
Saindo do curso, mamãe pediu para ser examinada por um plantonista, que disse que eu ainda levaria duas semanas para nascer, pois a barriga dela estava alta e o colo do útero, fechado. Spoiler: foi esse mesmo médico que fez o nosso parto, sete horas depois.
Outra bomba foi que o hospital informou que havia uma carência, e que só poderia nos internar nove meses adiante. Como se eu fosse capaz de aguentar 18 meses naquele lugar escuro e apertado! Foi por isso que a mamãe aguentou quase todo o trabalho de parto em casa, pois não sabia o que fazer, nem para onde ir. Não tinha nem a bolsa da maternidade pronta. Tudo porque o que ela havia lido sobre tampão mucoso e rompimento da bolsa foi completamente diferente da vida real. O tampão, que deveria sair dias antes do parto, saiu logo antes de eu nascer, no meio de um banho.
Quando ela já não aguentava mais de dor, chegou ao hospital implorando por uma cesárea. “Impossível”, disseram os enfermeiros. “Ela já está com 10 centímetros de dilatação, o bebê vai nascer a qualquer momento.” Ela pediu, então, que lhe dessem um pouco de anestesia e seguissem seu plano de parto, estudado e elaborado por meses. “Não dá mais também, a criança já está coroando”.
Eu nasci em menos de uma hora, ao som de Heal the World, de Michael Jackson. Mas a calmaria da música contrastava com os gritos da mamãe. Logo eu mamei, fui pesado, examinado, fotografado, tomei meu primeiro banho. Recebemos visitas, fomos para o quarto.
E em meio a visitantes com gripe, numa era pré-pandemia, a vida real se apresentou. Todos os livros, cursos e preparações se mostraram inúteis. Na sexta noite sem dormir, mamãe me deu uma chupeta – algo que jurou que nunca faria. Me deixou também dormir no meio dela e do papai, outra coisa que havia negado de pés juntos.
Além da privação de sono, vieram as minhas cólicas, os choros intermináveis, os gritos, as birras. Os problemas no casamento dela, a demissão no trabalho, a solidão materna, a falta de rede de apoio. Um monte de palavras que eu ainda não entendo, mas que aprendi a repetir – de tanto que a mamãe fala.
Mas eu a vi também fazer uma pós-graduação e a pesquisar sobre outras mães, outros bebês, sobre coronavírus, carga mental, influenciadoras e empatia nas redes sociais. Ela conseguiu se formar, tirou nota 10! E agora ouvi que vai entrar num mestrado na USP – não faço ideia do que seja, só estou repetindo –, para continuar estudando o nosso universo. Ela tinha tanto medo de morrer, mas parece (espero) que esse dia ainda está bem longe. Ela conseguiu reunir forças para cuidar de mim praticamente sozinha nos últimos três anos e meio, trabalhou, estudou e, agora que já não uso mais fraldas, de vez em quando vai sozinha ao teatro ou ao cinema. Dia desses, chegou em casa tarde e eu já havia adormecido na cama com o papai, sem precisar do mamá dela.
Acho que a mamãe renasceu mesmo depois que eu nasci. Ficou mais paciente, mais resiliente, mais diplomática (adoro usar palavras difíceis, acho que essas meus coleguinhas ainda nem conhecem). E agora, como ela mesma diz, está descobrindo sua nova identidade e reaprendendo a viver.
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Autora: Luna D’Alama / @lunadalama