Dois traços na fitinha significam “positivo”…
A ultrassonografia confirma. Quando um corpo passa a gestar outro, um universo de futuros começa a ser planejado: do nome até a cor do quarto. Em todas as pequenas e grandes coisas, em um mundo binário – há também uma série de restrições que dependem todas também de fitinhas X ou Y1. A expectativa é tamanha que tem gente que chega a pagar por um teste cromossômico caro2 para poder determinar qual será a cor das próximas fitas que virão nos presentes de chá de revelação e, a depender, nos cabelos. Quando não existe dinheiro para comprar o teste, a ânsia pelo exame morfológico do segundo trimestre3 ocupa o espaço “mais importante” na cabeça de quem gesta. O segundo maior momento depois de descobrir uma gestação é descobrir se é menino ou menina.
Quando engravidei, antes mesmo de me perguntarem “Você está bem?”, me indagavam: “É menino ou menina?”. E daí seguiam diversas crendices populares em relação ao tópico: Os desejos alimentares, os possíveis enjôos e azias, o formato da barriga, o maior inchaço ou não do rosto, o mês em que engravidei…Todas essas pequenas coisas eram indícios ou não da anatomia que eu carregava dentro de mim. Antes de saber o que meu bebê tinha entre as pernas era mais fácil lidar com a informação. Respondia simplesmente que não sabia. Nesse momento foi mais fácil que familiares ao meu redor aceitassem minha escolha por fazer um “Enxoval Unissex” que não demarcasse o gênero da minha criança – recebi muitas roupas, toucas e mantas amarelas porque “servia para os dois”- não entenderam muito bem o que eu quis dizer…
Afinal, para mim ao menos, valia a máxima de que bebês são bebês e não fazem a menor ideia do que são ou do que deveriam gostar até que alguém os diga – e a socialização cumpre um papel importante naquilo que entendemos ser “meninos” e “meninas”. Percebi que a mesma máxima era válida de forma alterada para aqueles que me cercavam. Para eles, bebês são bebês até que se descubra se possuem pênis ou vagina. Essa é, de maneira geral, a visão de um mundo cisheteronormativo obcecado com a binariedade e com o controle de corpos.
Eu, de fato, não fazia questão de saber essa resposta até o momento do nascimento – informação que só foi parcialmente aceitada sob a justificativa de que queria que fosse uma surpresa na hora do parto (O “chá de revelação” original?) – mas como existe uma “cultura médica do dizer” que me disse, fiquei com a informação. Foi justamente no famigerado exame morfológico que o médico achou prudente circular a genitália do meu bebê e escrever “PINTINHO!” na imagem do laudo que levei para casa. Esse momento, é claro, foi acompanhado de um comentário sobre como meu bebê seria um ótimo jogador de futebol, e que eu poderia, com certeza, comprar uma chuteira – porque ali tínhamos um menino.
Foi aqui que as coisas complicaram. Ao ser indagada com a mesma pergunta de sempre sobre o sexo do meu bebê, eu não sabia o que responder. Improvisava sempre as respostas para estranhos: do “não sei’ ao “tem pinto”. No âmbito familiar – especialmente da família do meu companheiro – nosso enxoval foi ficando crescentemente mais azul e verde, até chegarmos no ápice de ganharmos um uniformedo “clube-de-regatas-quem-liga”. O bebê não podia escolher nem suas cores, nem seu time. Fico me perguntando se uma bebê “menina” ganharia o mesmo uniforme, ou se ganharia um vestidinho com as cores do time.
Navegar nesse mundo paranoicamente binário, tentando criar um bebê que se desprenda disso tem sido uma experiência. Aprendi que é preciso, quase que obrigatório, fazer algumas renúncias: Eu uso pronomes masculinos para me referir ao meu bebê, por exemplo. Sei que usar pronome neutro seria polêmico demais até para os setores mais progressistas da minha família – de quem dependo. Frequentemente, no entanto, não corrijo quem assume que seus pronomes são femininos, e faço questão de, ao interagirmos, usar o mínimo possível de marcadores de gênero na fala. Essa é uma das estratégias que uso para conseguir quebrar uma norma, dentro das regras do jogo.
Tirei essa inspiração de feministas que tiveram filhos e escreveram livros sobre isso quando descobri que esse era também meu caso. Pois, eu não pude deixar de me perguntar…
O que acontece quando uma feminista tem um filhO?
Primeiro, confunde um pouco quem pouco sabe ou não liga: “É feminista e vai ter filho? Mas e a libertação e o mimimi de que o sonho de uma mulher não é ser mãe?”. “Ué mas você não é a favor do aborto?!”. Absurdos possíveis. “Feministas podem ser mães? que coisa estranha … o problema não era justamente esse?”. Sim! podem querer, não precisam ser. Se falarmos, então, que não apenas mulheres engravidam a cabeça desses explode. Eu pessoalmente acredito que é positivo que mães/pais/cuidadores sejam feministas. Criar uma geração feminista me parece interessante. É claro que nem todo feminismo é aliado de um futuro feminista. E aqui, eu acho importante eu situar de onde parte o meu ponto de vista feminista4 – se o que nos une como mulheres feministas é o nosso desejo por libertação em comum (HOOKS apud BARROS, 1995) e não o nosso inimigo em comum, é plausível que acolhamos também outras lutas. Temos muito em comum com muitas outras pessoas que também desejam ser libertas de paradigmas estigmatizantes colocados pelo capitalismo. Eu acredito que o feminismo possa se tornar um guarda chuva que abriga também outras lutas. Propondo um tipo de universalismo que se una por multiplicidades e que ao mesmo tempo entenda que raça, gênero, sexualidade, etnia, deficiência etc. são diferenças que devem ser levadas a sério (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019). Com isso quero dizer que verdadeiramente acredito que o feminismo pode ser para todes e todos e não só para todas. Essa noção de feminismo, é claro, não me vem naturalmente, como bem lembra bell hooks: “Feministas são formadas (…) uma pessoa adere às políticas feministas por escolha e ação” (HOOKS, 2023, p.25).
Depois, essa aqui precisa fazer uma confissão. Criar uma menina feminista era algo que eu me sentia mais confortavel em fazer. Nisso eu tinha experiência. Afinal, me criei feminista uma vez. Estou, inclusive, constantemente me recriando no meu feminismo e sei que poderia fazer isso de novo – e melhor – se pudesse começar do zero. Ensinar a minha garotinha que ela pode ser o que quiser, gostar de quem quiser, usar o que quiser, que estereótipos de gênero são balela e que o sexismo nos atinge a todos em diferentes graus e níveis. Essas são lições que ainda estou aprendendo e a maternidade tem me ensinado muitas outras que compartilharei aqui. Ao descobrir que teria um filho, me enxerguei numa posição de desconforto. Admito que caí na armadilha de achar que o problema do mundo é o homem e que sua “biologia masculina” o faria necessariamente um. Sei que esse discurso é raso e curto. Por isso, inclusive, é tão popular – É mais fácil cair no seu simplismo. É uma resposta pronta para tudo: “Tinha que ser homem,né?”. Esse feminismo mainstream que resume-se a ser anti-homem é uma gigantesca armadilha. Se partimos de um lugar de feminismo que coloca a mulher como ‘a outra’ do homem e paramos nossas análises aí, culparemos a entidade “do patriarcado” como nossa maior inimiga e será fácil representa-lá por basicamente qualquer-homem-que-exista. Essa visão do que é ser feminista tem classe e raça, são mulheres de classe média e brancas que estão por detrás desse discurso que, no final das contas, essencializa nossas diferenças biológicas em uma chave restritamente binária e coloca que a “libertação das mulheres” é resumida às suas possibilidades individuais de “ocuparem o mesmo lugar que homens”. Ignoram, essas “outras”, que também produzem outridades, que também têm seus “outros, outras e outres” (HOOKS, 2023).
Quando descobri que teria um filho tive que revisitar brevemente meu feminismo porque tive um medo derivado da noção rasa de que os “homens são o problema”. Esse medo passou rapidamente na minha cabeça e rapidamente também foi ressignificado. Eu soube discernir o simplismo do meu próprio pensamento. E me reorientei – preciso criar uma pessoa feminista. Porque acredito que nossas crianças são a vanguarda de um reinado de respeito às diferenças que ainda não foi estabelecido.5 Porque sei que ninguém nasce sendo nada6. Porque sei que estereótipos de gênero são balela. Porque sei que o sexismo nos atinge a todes de diferentes formas. Porque, no final das contas, todas as lições que eu poderia dar a “minha garotinha feminista” são aquelas que valem para toda e qualquer pessoa, inclusive aquela que estava dentro de mim, pois, “a lição mais contundente que posso ensinar para meu filho é a mesma que posso ensinar a minha filha: como ser exatamente quem ele deseja ser” (LORDE, 2019, p.96). Para ensinarmos a nossas crianças tamanha liberdade de ser, não podemos restringir suas opções. É claro que eu poderia, por exemplo, criar um menino verde-azul que tem como preferência a cor verde. Mas o estaria enganando. Restringindo suas possibilidades de escolha dentro do que é socialmente aceitável que ele goste. Eu entendi que, para promover verdadeira autonomia, teria de ofertar todas as cores e sabores possíveis ao meu filho, inclusive a oportunidade de se entender como bem quisesse. Foi nesse ponto que a descoberta da parentalidade neutra7 me encantou – criar um bebê e não um “menino” ou “menina”, promover todas as experiências possíveis independentemente do gênero e do pronome. Depois que me resolvi com o fato comigo, tive que lidar com o fato para o mundo, e este não tem o mesmo horizonte feminista em mente que eu.
E a minha aldeia feminista?
É ditado popular que “É preciso de uma aldeia para criar uma criança”. Na antropologia esse dizer não podia estar mais certo. Lembremos do texto de Anthony Seeger, “Pesquisa de campo: uma criança no mundo”, em que o antropólogo cuidadosamente narra sua imersão em uma reserva indígena brasileira no Mato Grosso do Norte, relatando como foi a introdução da cultura do povo Suyá por meio da aldeia, que o tratava como uma criança. Nesse cenário, de fato, foi preciso de toda uma rede de pessoas que pudessem ensinar os meios de viver naquela sociedade. É particularmente interessante que ele tenha sido tratado como uma criança, visto que essas chegam “sem conhecimentos prévios” nesse mundo, e vão aprendendo as normas e condutas “apropriadas” conforme vão sendo socializadas. A questão que não pode ser desconsiderada quando trazemos a analogia para a nossa lógica de funcionamento social é : O que a aldeia/sociedade está ensinando a essa criança?
Ora, pois, se é preciso uma aldeia mas essa aldeia se nutre de valores profundamente cisheteronormativos, racistas e excludentes, esses são valores que eu gostaria de transmitir para minha criança? Minha resposta certamente é “não”, e infelizmente vivo em uma lógica social que os tem como pilares estruturais. Foi com isso em mente que Sonora Jha, professora de jornalismo da Universidade de Seattle, se perguntou: “Se é preciso uma aldeia, cadê minha aldeia feminista?” (JHA, 2021, p.88). Essa pergunta, foi acompanhada de um longo parágrafo argumentando que deveríamos criar nossas aldeias feministas e filtrar que tipo de informações sociais são passadas para os nossos filhos – mesmo que isso envolva ficarmos distantes de familiares próximos. Querida professora, essa é uma missão impossível. Acredito que possam existir famílias que consigam proteger suas crianças nesse sentido mais íntimo, infelizmente essa não é minha realidade. Dependo da família extensa que rejeita completamente meus valores “progressistas”, ainda que meu filho tenha a mim e ao pai como exemplos positivos. Estar nessa situação particular, me fez ter muitas renúncias. A parentalidade neutra que tanto me encantou simplesmente foi por água abaixo no momento em que descobri que teria um “menino”. Percebi que desafiar estereótipos de gênero, criando o que a sociedade espera que seja um “cabra-macho” é enormemente desafiador. Parece ser mais fácil que pessoas ao meu redor aceitem que “mulheres podem ser o que quiserem” (se forem cisheteronormativas, podem usar terno azul!) do que “homens podem ser o que quiserem” – porque estes não podem fazer nada “feminino” demais, caso contrário estarei criando (que horror!) uma mulher ou um viado. Se criar um bebê “menino” dentro de uma família orientada por valores sociais dominantes já é um desafio enorme por eu não pretender limitar suas possibilidades de experimentação, quem dirá criar um bebê sem gênero, me referindo a ele com linguagem neutra. Eu poderia escolher fazer isso, ousadamente, e enfrentar a sociedade e a família que discordasse. Mas na maternidade, a gente precisa escolher nossas lutas, e eu acredito que a fundamental eu travo. Não posso mudar a sociedade que o cerca e nem filtrar suas interações familiares, mas posso servir de testemunha consciente nessas vezes em que o exemplo falha. Assistindo de maneira ativa o que vejo, comentando, me posicionando, explicando o que não vale ser passado pra frente (QUEIROZ,2021). Assumo o comprometimento de uma criação que rompa com “treinamentos de gênero” 8(Ibidem, 2021) ainda que não rompa com os pronomes designados a partir da genitália ao nascer – num primeiro momento, pelo menos. Pois, meu filho terá toda a liberdade de me dizer, um dia, como quer ser chamado, como quer se vestir, de quem quer gostar, e o que gostaria ou não de fazer. E eu estarei de consciência limpa, se porventura, ele se tornar o cara mais padrão possível, pois terei ofertado a ele todas as oportunidades de experiências para que ele desenvolva suas preferências e expressões – dos brinquedos às roupas.
Trocas de body
Aconteceu no intervalo de um dia. De manhã, fui ao mercado da minha esquina com meu bebê que usava uma roupinha rosa de gatinhos e borboletas. Fomos abordados por algumas senhoras – “que linda, sua bebê!”; “Ainda não colocou o brinquinho?”;“A menininha mais linda!”. Agradeci todos os elogios e segui com meu dia. De tarde, em uma reunião de família, meu bebê usava uma roupa verde listrada e ouvimos – “Nossa, mas ele tem muita cara de machão, né?”; “Ele tem cara de menininho mesmo, né?”. De “menina linda” a “cara de macho” no intervalo de poucas horas. Será que trocaram meu bebê sem eu ter visto? Não… Eu apenas troquei seu body.
Esse episódio é particularmente interessante pois situa algumas discussões intrínsecas a esse trabalho. Se em um primeiro momento, ainda na gestação, eu era frequentemente abordada por estranhos com a pergunta “é menino ou menina?”, agora a resposta já os vem visualmente. Se está com roupas “femininas” – isto é, rosa ou lilás, com babados, gatinhos, flores e borboletas – é uma menina. Se está com roupas “masculinas” – verde ou azul, com corte reto, dinossauros ou animais selvagens – é um menino. Perceba, essas pessoas não deixaram de fazer a mesma pergunta de sempre, só pularam a etapa do questionamento pois tinham o que julgavam ser a confirmação visual performática de suas concepções sobre o que são corpos femininos e masculinos9. Essa concepção, por sua vez, sempre vem com outra: a ideia de que o gênero perfomado (BUTLER, 2008) é igual a sexo biológico. Assim, no final das contas, a pergunta que realmente fazem sobre o corpo que observam é se “Tem pinto ou pepeca?” e a partir desse dualismo modulam o que é o comportamento esperado para esse tipo de corpo. Esse policiamento do sexo por meio de uma política de gênero (STERLING, 2002) representa um esquema que opõe natureza x cultura e, no entanto, justifica uma pela coisa pela outra – como se o gênero, em uma lógica binária, em seus os atributos tidos como feminilizantes ou masculinizantes, ‘nascesse’ da genitália. De uma forma geral, o senso comum da nossa socialização é unir ambos os parâmetros. Se o gênero tido como feminino, por exemplo, é aquele da pessoa que detém uma vagina “é preciso” controlar para que esse tipo de corpo performe a feminilidade que lhe é supostamente inerente. Dessa forma, no senso comum, sexo e gênero se encontram em uma dicotomia falsa, uma vez que assume-se que sempre coincidem. No entanto, essa não é a realidade. Por algum tempo, feministas tentaram fugir dessa visão estigmatizada de que o sujeito “mulher” vem com uma série de características inatas só por ter nascido com uma vagina. Foi assim, inclusive, que os “estudos da mulher” se tornaram os “estudos de gênero” , pois estas criaram uma categoria de análise que enfatizava o fato de que não eram as diferenças biológicas que as fazia serem “submissas ao homem”, mas sim diferenças socialmente colocadas e construídas para servirem a um fim de opressão. Nasce aqui uma visão do “gênero” como um imperativo da cultura, e do “sexo” como anatomia/biologia. (PISCITELLI, 2008), em outras palavras “surge” a distinção entre sexo/gênero.
Se o gênero é mera construção social, tudo aquilo que colocamos nas caixinhas “de homem” e “de mulher” são convenções criadas. Isso significa dizer que essas caixas são mais imaginadas do que reais, ou ainda que não existe uma delimitação natural para expressão de quem somos, e que os atributos que julgamos “masculinos” ou “femininos” se resumem a questões de nomeação. A biologia que difere os corpos, entra aqui como uma diferença anatômica, não-limitadora – pelo menos no sentido de não trazer uma essência consigo, mas ainda se limita a dizer que o corpo do “homem” é o que possui pinto, e o corpo da “mulher” é o que possui vagina. Esse entendimento, certamente mais positivo do que um sistema que coloca sexo e gênero em par de igualdade e simultaneadade, possui também suas problematizações. Corpos e vivências que rompem com fronteiras (STERLING, 2002) binárias de performance e vivência anatômica10 não se encaixam nesse modelo muito bem. Se “Nossos corpos são complexos demais para dar respostas claras sobre a diferença sexual” (Ibidem, 2002, p. 19) não cabe dizer que determinada genitália é “de-alguma-das-duas-opções”, pois, o sexo biológico é falácia construída assim como é a idéia de um gênero inato e é, também, tão discursivamente construído quanto (BUTLER, 2008).
Se a nossa sociedade fosse orientada por esse tipo de saber, na sala de ultrassonografia, por exemplo, ao descobrir a anatomia do meu filho, nunca iria se assumir qual identidade ele teria. Não haveria uma curiosidade absurda para determinar “se é menino ou menina”, suas roupas, nesse primeiro momento, não seriam indicativos de nada além de um bom senso fashion vindo de seus cuidadores. E não haveria uma força social gigantesca que tentasse incutir papéis de gênero tão cedo em nossas crianças (ADICHIE, 2017).
Por uma criação de gênero criativa!
Preciso terminar esse trabalho sendo positiva, ou pelo menos, oferecendo uma alternativa. O horizonte da nossa sociedade não parece ser favorável a uma lógica operacionalizante que não seja completamente binária. Mesmo quando reconhecemos desvios da norma, esperamos que estes se enquadrem de alguma forma às regras do jogo11. Eu escrevi um pouco sobre como eu tento fugir dessas imposições na criação do meu filho, uma vez que uma criação de gênero neutro, não-binária, não me é possível. O que tento praticar, é uma criação de gênero criativa que permita meu filho explorar tudo que quiser, “coisas de menino” , “coisas de menina” serão, para ele, “coisas de criança”. Descumpro com essa expectativa respeitando alguma regra do jogo – a presunção de cisgeneridade.
Criá-lo dessa forma, o protege da violência psicológica e sexual que seria encaixar (prender!) ele em determinado estereótipo de gênero. Ademais, “um mundo generificado produz um cérebro generificado” (RIPPON apud QUEIROZ, 2021, p.40). Ou seja, se limitasse sua experimentação, estaria também limitando suas possibilidades cognitivas – Aquele papo de “mulheres são biologicamente insira-aqui-algum-atributo-limitante” só se torna verdade porque as criamos para serem assim, com os homens a mesma coisa. A realidade é que nichamos tanto as opções que ofertamos para nossas crianças que mantemos uma estrutura desigual desde o início de suas existências e depois dizemos que o nicho em que estão inseridas é completamente natural. Não percebemos nossa parcela de culpa nessa equação.
Falar de uma “criação de gênero criativa” pode soar como redundante. Afinal todo gênero, já vimos, é criado. No entanto, é a parte “criativa” que adjetiva e distingue o que quero dizer. Se optasse por uma criação de gênero tradicional, iria pelo caminho da manutenção de hierarquias sociais baseadas em paranoias de performance M ou H. Se ousasse por uma criação de gênero neutro, nos termos em que é concebida, fugiria de todos os códigos e símbolos que significam ou implicam em performances de M ou H (O que frequentemente se traduz em uso de pronomes neutros, brinquedos sem gênero demarcado – frequentemente de madeirinha – e roupas em tons neutros). Ao escolher uma criação de gênero criativa convido a uma parentalidade que permita o brincar, criar e experimentar entre as performances M ou H, reconhecendo que, em um mundo binário é quase impossível fugir dos “universos azul e rosa” atribuídos às vivências, mas que é perfeitamente possível ensinar às nossas crianças a pensarem, se relacionarem e existirem apesar deles, rompendo suas fronteiras – brincando por onde quiserem.
Referências Bibliográficas
ADICHIE, C. N. Para educar crianças feministas: um manifesto. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T.; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
BAIRROS,L. Nossos Feminismos Revisitados. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3, nº 2, pp.458-463, 1995.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
FALLEIROS, B. L. J. Sexo designado antes de nascer: imagens fetais como tecnologia de produção de gênero. Mestrado em Estudos Culturais—São Paulo: Universidade de São Paulo, 26 maio 2020.
FAUSTO-STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, n. 17-18, pp. 9-79, 2002.
feminista e o conceito de gênero. Campinas-SP, IFCH/Unicamp, vol. 48, 2002.pp. 7-42.
HOOKS, BELL. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 21. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2023.
JHA, S. Como educar um filho feminista: maternidade,masculinidade e a criação de uma família. Rio de Janeiro: Agir, 2021.
LORDE, A. Irmã outsider. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
Pesquisa de campo: uma criança no mundo (Seeger 1980) – Biblioteca Digital Curt Nimuendajú. Disponível em: <http://www.etnolinguistica.org/biblio:seeger-1980-pesquisa>. Acesso em: 29 nov. 2023.
PISCITELLI, A. Re-criando a categoria mulher? In: ALGRANTI, Leila. A prática
QUEIROZ, N. Os meninos são a cura do machismo. Rio de Janeiro: Record, 2021.
“Boy or girl?” Parents raising ‘theybies’ let kids decide. Disponível em: <https://www.nbcnews.com/feature/nbc-out/boy-or-girl-parents-raising-theybies-let-kids-decide-n891836>. Acesso em: 4 dez. 2023.
1 Aqui preciso fazer um disclaimer para o povo da biologia (o único que farei ao longo deste trabalho!). Sei que minha metáfora está errada do ponto de vista biológico. Não existem “Fitas Cromossomiais X e Y”, mas sim “fitas de DNA”. Pela poética da coisa, vou manter. Vocês também mantiveram/mantêm muitas liberdades de erros quando falam da gente.
2 Teste de Sexagem Fetal: Exame que revela o sexo biológico do bebê ao redor da oitava semana de gestação. Foi criado entre os anos 90 para identificar doenças cromossômicas mas se popularizou por adiantar a revelação do sexo do bebê. Custa em torno de RS 200,00 atualmente. Não requer pedido médico para ser realizado (FALLEIROS,2020).
3 Exame de ultrassonografia que permite entender qual a morfologia do feto – detalhes do corpo, visualizando detalhadamente o Sistema Nervoso Central, extremidades esqueléticas, face, coração, rins e outros órgãos internos. Ver: https://delboniauriemo.com.br/saude/ultrassom-morfologico.
4 Feminist Standpoint, a noção de que “Não existe uma identidade única pois a experiência de ser mulher se dá de forma social e historicamente determinadas” (BARROS, 2019,p.461)
5 Paráfrase de “Todos os nossos filhos são a vanguarda de um reinado de mulheres que ainda não foi estabelecido” (LORDE, 2019, p.91)
6 E nem precisa se tornar necessariamente mulher, dona Beauvoir!
7 No inglês, “Gender Neutral Parenting” – pais que, para fugirem da imposição de gênero em suas criações, usam o pronome neutro (Them/they) para se referirem a seus filhes, que chamam de “Theybies”. No português, eu entendi que uma boa tradução para isso seria apenas a palavra “bebê”, uma vez que esta já não possui flexão de gênero. (“’Boy or girl?”, 2018)
8 “Treinamento de gênero”: Projeções sociais sobre como meninos e meninas deveriam se comportar. Treinamentos de habilidades de maneira desigual na escolha de brinquedos, brincadeiras, roupas, produtos culturais e interações sociais. (QUEIROZ, 2021,p.41)
9 Aliás, o que a semiótica dessa performance nos ensina sobre o que são “homens” e “mulheres” na nossa sociedade? Que uns podem ser ativos, ferozes e radicais como feras na selva e que outras podem ser passivas, calmas e delicadas como um campo de margaridas?
10 Pessoas Transgênero, binárias ou não binárias, genderfluid, agênero, intersex e travestis são exemplos de contestação dessa norma.
11 Aceitamos, por exemplo, que a cisgeneridade não é exclusiva e que existem pessoas trans, no entanto, essas precisam perfomar o “feminino” ou “masculino” dentro daquilo que acreditamos ser prudente para esses “novos” corpos.