Meu filho de 8 anos me lançou uma pergunta “daquelas” esses dias. Ele disse:
“Mãe, a xereca é quando não tem pinto, certo?”
Essa questão puxou toda uma reflexão interna que eu estava fazendo sobre a relação da medicina com o corpo feminino.
Logo volto ao assunto. Vamos ao momento da conversa com meu pequeno.
Na hora, fiquei assustada com a questão, não pelo conteúdo da anatomia dos órgãos sexuais — conversamos livremente sobre o assunto — mas, pela observação de que meu filho compreendeu, naquele momento, que uma parte do corpo feminino deveria ser entendido a partir da referência de uma parte do corpo masculino. Em miúdos, o pênis seria o ‘normal’ e sua ausência faria o “outro” se manifestar, o “não-homem”: a mulher.
Imediatamente lembrei de um entendimento que já havia lido sobre a compreensão da filosofia aristotélica a respeito da mulher:
“Para Aristóteles a mulher é uma espécie de desvio relativamente a um tipo mais perfeito que se concretiza no homem. É uma privação. O homem é a medida da humanidade e ela é uma falha, uma falta, um homem incompleto ou mesmo mutilado, como é explicitamente referido noutros textos: ‘A fêmea é um macho mutilado’” (FERREIRA, 2014, p.3)
Considero que esse pensamento é fruto de uma consciência cultural e patriarcal que domina os espaços da prática da medicina e nos fez ficar estarrecidos com a terrível denúncia de um anestesista abusador. Ele praticava a violência contra as mulheres dentro da sala de cirurgia de cesárea, na frente dos outros profissionais, utilizando, para isso, seus medicamentos para sedar desnecessariamente a paciente. Como um objeto, aquela mulher era um não-homem, usada a favor dos caprichos do homem, do ser que prevalecia sob aquele corpo…
A objetificação do corpo feminino é muito mais ampla do que simplesmente associar a mulher à sexualidade, como costumamos comentar. Ela se espalha em todas as instâncias de existência da mulher, incluindo na relação da medicina com o entendimento, manejo e respeito a esse corpo.
Por exemplo, quando uma cantora de fama internacional e cheia de dinheiro como Anitta diz que demorou 9(!) anos para descobrir que sofria de endometriose não é uma questão de azar da artista, ou do sistema de saúde do Brasil ser precário, ou da falta de bons profissionais. O estudo sério sobre endometriose é um fato recente, se comparado a outras enfermidades que acometem a existência da humanidade. Um dos motivos para isso seria a excessiva relativização da dor feminina, onde muitas mulheres têm seus sofrimentos físicos ignorados quando buscam atendimento médico.
Se fizermos um recorte de raça, essa questão se torna ainda mais séria com a abominável cultura racista que implementou ideias de que as mulheres negras suportam mais dor e sofrimento. Isso é escancarado nos dados de violência obstétrica dominados por registros de mães negras humilhadas na hora do parto, machucadas, ou até desprezadas quando reclamam do excesso de dor no corpo parturiente. Além disso, há evidências históricas de que muitos experimentos da medicina ginecológica (sem anestesia!) eram feitos em mulheres negras — todos baseados nessa mesma lógica de “força” diante da dor.
Finalmente, vou enumerar mais alguns fatos que relatam como as práticas da medicina enxergam o corpo feminino como apenas um objeto de experimentação e pouco valia. Observe:
- Os inúmeros efeitos colaterais dos anticoncepcionais femininos, que podem causar doenças graves e até a morte.
- A descoberta tardia do estudo completo da anatomia do clitóris (1998!), mesmo com tantos avanços na medicina sobre todas as outras partes do corpo.
- Práticas normalizadas na obstetrícia que nos últimos anos passaram a ser consideradas como violência obstétrica, como a manobra de Kristeller que pode causar o rompimento do útero e a quebra das costelas da mulher.
- A não legalização do aborto nos projetos de lei, mesmo com os altos índices de mortes de mulheres que abortam em clínicas clandestinas.
Você pode continuar essa lista com outras evidências que mostram como a medicina, quando estuda, acompanha e trata uma mulher, não a enxerga como um ser humano, mas como aquilo que é o não homem, o não humano e por isso, não seria digna de ter seu bem-estar físico considerado e respeitado.
FONTES:
FERREIRA, Maria Luísa Ribeira. A mulher como o «outro»: a filosofia e a identidade feminina. Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 24, n. 1, 2014.
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/07/11/estupro-parto-rj.htm
https://revistatrip.uol.com.br/trip/por-que-ainda-nao-ha-uma-pilula-anticoncepcional-masculina
https://brasil.elpais.com/brasil/2020/02/28/eps/1582912339_151609.html