No nosso encontro passado, falei um pouco da minha experiência como mãe e como isso me despertou para a não-binariedade. Clique aqui para ler e depois, continue a leitura aqui, pois vou explicar direitinho o que é gênero e muito mais. Vamos lá?
Antes de trazer minhas análises, vamos a um bê-a-bá breve do que podemos compreender a respeito de gênero e identidade. Essa figura do unicórnio da diversidade explica bem as definições mais simplificadas de Gênero, Orientação Sexual, Identidade e Expressão de Gênero. Confira:
De acordo com as teorias Queer, ou estudos de gênero – que já dominam espaços nas maiores universidades do mundo -, ao nascer, somos designados biologicamente por um gênero de acordo com o órgão reprodutor que temos e normalmente isto determina como nos expressamos socialmente, estabelecendo inclusive a quem devemos nos atrair sexualmente e romanticamente.
Se não refletirmos, todos os pontos acima nos são entregues com a bandeja da “normalidade” e entendemos que basta seguir o que nos cabe e seremos felizes. Mas somos muito mais que isso e com a explicação simples deste Unicórnio podemos observar precisamente onde nos colocamos para cada ponto que ele apresenta. Eu nasci designada como menina – e depois mulher – porque foi identificado em mim a presença de uma vagina e útero.
Isso automaticamente me colocou como uma pessoa que performaria a dita feminilidade e gostaria de beijar homens e se apaixonar por eles. Foi meditando nessas regras recebidas que eu decidi colocar meu corpo e minha expressão social em cheque. Quem eu quero ser? mulher, homem? Feminina ou masculino? O que me faz ser o que sou? O tamanho do meu cabelo, os pêlos nas minhas axilas, ou meu mamilo?
Vou agora trazer a abordagem de duas pessoas que se tornaram minhas principais referências sobre as ideias de gênero.
Primeiramente, o/a poete, artiste e escritore americane transfeminine e não-conforme em gênero Alok Vaid-Menon apresenta que o sistema binário é uma estrutura imposta, colonialista, ocidental, uma forma de opressão da expressão humana, de suas possibilidades e singularidades/criatividades.
Isto porque estudos já demonstram que a ideia de gênero em povos indianos, indígenas, africanos e de outras regiões era mais ampla, com possibilidades complexas e diferenciadas.
Ile aponta que até a binaridade de nossas roupas é um evento recente, do final do século 18, que determinou que certos trajes e produtos seriam divididos como masculinos e femininos. E essa concepção binária mistura-se à construção do patriarcado, uma forma opressiva de diferenciar humanos de acordo com seus órgãos reprodutores, usando a justificativa biológica para organizar a função feminina para dentro do lar e da maternidade e do homem para conquistar espaços de poder e voz.
Rita Von Hunty, persona drag queen do professor, ator e You Tuber Guilherme Terreri Lima Pereira, já indica estudos históricos que apresentam a primeira drag queen, William Dorsey Swann, como uma pessoa não binária, negra, ex-escrava que vinha de um povo que não tinha atribuição de gênero.
No Brasil, inclusive, ele explica que também temos muitos relatos semelhantes. Por exemplo, no Brasil Colônia havia a Chica do Manicongo, primeira travesti perseguida pela Santa Inquisição. Ela vinha de um povo onde performar como outro gênero fazia parte de sua cultura. Anterior a isso, há o caso do índio Tibira, pertencente a um povo originário indígena que não possuía gênero binário e onde ele desempenhava abertamente um papel feminino. Por conta dessa característica, ele teve seu corpo explodido por um canhão, se tornando o primeiro caso de homofobia e transfobia registrado no Brasil. Rita ainda esclarece que todos os povos ameríndios – do Canadá à Patagônia – tinham um sistema de gênero em tríade, homem, mulher e dois espíritos.
Semelhante a fala de Alok, Rita Von Hunty explica que a visão binária de gênero, com divisão sobre roupas e trejeitos é um projeto recente, já que o papel masculino na França do século 15 incluía maquiagem, meias, peruca e outros elementos “femininos”, especialmente para as pessoas mais importantes como ministros, reis e príncipes.
Enxergar o mundo como duas possibilidades é uma importação europeia, fruto da colonização e da catequese, em prol da construção da família, da posse privada e do controle social.
Por isso, ela aponta que mexer na questão de gênero significa movimentar um lugar muito profundo da nossa construção social e econômica – um espaço que foi feito para colocar um grupo como participativo (homens) e outro a serviço do anterior (mulheres), especialmente através de trabalho não remunerado e subalterno.
Os apontamentos destes estudiosos e observar meu filho e como ele – tão parecido comigo – transitava belamente em uma aparência feminina ou masculina, me ajudaram a compreender o gênero como um treinamento social que movimenta as peças do jogo de poder político atrelado ao patriarcado.
Entendi que tudo que tentei ser, e era chamado de feminino, se tratava de uma mera performance imposta ao meu corpo e, se eu era capaz de atuar nela, mesmo sem vontade, o que poderia ganhar se escolhesse voluntariamente os caminhos de outras formas de expressar um gênero?
Na não-binariedade encontrei uma maneira de me deslocar por um espectro de cores que achariam espaço nos meus traços, minhas roupas, minha forma de sentar, decorar meu rosto e muito mais.
Hoje eu posso dizer que estou em um processo muito iniciante da não-binariedade e que ele basicamente se passa muito diante do espelho.
Por várias vezes eu experimento possibilidades fora da bolha da feminilidade e de repente ouço vozes, como: “nossa, pareço um homem assim”. E aí aproveito este momento pra dizer: “por que não ser um homem?”
Por outras vezes, eu simplesmente me enxergo como um não-gênero. Apenas um ser com batom vermelho na cara, shorts masculinos, brincos pendurados e pelos nas pernas.
Enfim, o que posso dizer é que estou saindo desse lugar de dois pontos opostos, onde eu olhava um com repulsa e medo, e o outro com expectativa e ansiedade, para me entregar a muitas possibilidades, tão variadas que talvez leve uma vida inteira para experimentá-las.
Fontes e links úteis:
- Alok se identifica como pessoa não-binária e usa os pronomes neutros “they” e “them”, que não possuem uma tradução literal para o português, mas o movimento queer utiliza “elu/delu/ile/dile” como alternativa.
- Fonte da entrevista com Alok: https://youtu.be/Tq3C9R8HNUQ
- Fonte da entrevista com Rita: https://www.youtube.com/watch?v=VlOVwMgkvPM
- Como vamos nos referir a Guilherme como sua persona Rita, os pronomes usados serão “ela/dela”.