Coluna | 120 minutos de espera

Compartilhe esse artigo

Pronto-socorro. Máscara. Recepção. Cartão do SUS e identidade. Só aguardar.

Triagem. Pulseira verde. Isso significa que você pode esperar até 120 minutos.

120 minutos, num pronto-socorro. 120 minutos num pronto-socorro lotado. Pelo menos, lá tem pediatra. Era o que me consolava.

Ah, quase me esqueci de contar: nesse dia, eu era apenas acompanhante. Raramente ficam doentes – e, assim, eu sigo em minhas orações, pedindo a Deus que lhes dê saúde. Porque só uma mãe sabe o que é ver um filho doente. UPA, postinho, UBS, pronto-socorro… Não importa. Não há nada mais angustiante do que ter que estar lá. Ah, o SUS… Ruim com ele, pior sem ele.

Naquela tarde, a mãe perdeu o dia de trabalho.

Ao entrar na pediatria, o incômodo só aumentou. Corredores lotados. Choro, conversa e risadas se misturavam ao ronco da ambulância ligada, ao ranger da porta velha e à Galinha Pintadinha, no volume ensurdecedor, que acalmava a criança febril à espera de atendimento havia, no mínimo, 120 minutos – como nós, ali, naquele pequeno espaço.

A enfermeira dizia à sua companheira: “Não tem mais lugar, peçam que fiquem por lá mesmo”, ao mesmo tempo em que outras duas funcionárias entravam para esquentar sua marmita numa pequena salinha – que, sinceramente, não entendi por que raios se encontrava ali.

Bancos desconfortáveis. Bolsas e capacetes ocupavam lugares. Mães e crianças mais velhas se encostavam nas paredes, fazendo com que a superlotação parecesse ainda maior.

Chinelo arrastando. Ao virar-me, deparo-me com a cena de uma menina carregando a bolsa da irmãzinha, que, por sua vez, era carregada nos braços da mãe.

Máscaras pelo chão. Por onde se olhava, elas estavam lá. Ninguém tem mais medo do invisível – deveriam. O invisível pode ser tão cruel quanto tudo de tão palpável que acontecia ali.

120 minutos.

A todo instante, enquanto aguardávamos, enfim, o anúncio de nosso nome no monitor, uma nova mãe adentrava o corredor. As pulseiras variavam de cor: amarela e laranja. E, com isso, nós, com a pulseira verde, ficávamos para trás. Assim, os 120 minutos se agregavam à aflição, à dor, ao incômodo, mas também ao discernimento de que sempre tem alguém em situação mais grave que você – mas que, se você não for logo atendido, é a sua situação que pode mudar de cor.

Enfim, uma cor é a que, na maioria das vezes, predomina: a da mãe.

É dela que vem a ferocidade de fazer pelo seu (ou pelos seus) aquilo que ninguém mais fará. É ela que abdica do seu próprio eu para cuidar, lutar e sonhar pelos seus.

Por sorte, o monitor nos chamou. Num piscar de olhos, outra família se sentou no lugar onde estávamos.

No consultório, uma surpresa: quatro pares de olhos nos receberam. Sim, além do jovem doutor, outras três jovens residentes (imagino eu). Fomos muito bem tratadas: dúvidas esclarecidas, conversa amigável, criança muito bem examinada, medicação e exames encaminhados. Porém, me senti num laboratório, como uma cobaia num experimento. Sei que tudo isso é permitido, mas a intimidade do paciente e seu consentimento ficam aonde? Sei também que a prática é necessária para a formação dos médicos e que é na saúde pública que se encontra o maior desafio. Mas já repararam que, ao se formarem e conseguirem, enfim, pôr em prática tantos anos de estudo, dedicação e investimento, esses mesmos médicos abrem suas clínicas particulares e se dedicam então a outro público? Servimos de experiência, mas não para nos salvar.

Quanta reflexão em 120 minutos. Na verdade, ali se deu apenas o início – ou a continuidade – de reflexões corriqueiras na mente de uma mãe preta nessa lida árdua pela dignidade de seus filhos.

Ao sair do PS, ainda no corredor da pediatria, os efeitos sonoros eram ainda mais eloquentes e se misturavam ao som de uma furadeira, manuseada pelo senhor que fazia a manutenção do local.

Insano, mas real.

Compartilhe esse artigo

Leitura relacionada

Últimos Artigos

Deixe um comentário