Chega de abuso: A cultura sobre os corpos infantis

Chega de abuso: A cultura sobre os corpos infantis

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Nas últimas semanas vimos a Internet discutir sobre o vídeo publicado por um cantor famoso em que seu amigo e pastor religioso toca inadequadamente o corpo de uma menina de biquini com seus 9, 10 anos de idade. Estes quinze segundos de gravação, que fizeram o país parar para apontar que algo estava muito errado naquela cena, me fez lembrar de uma história bastante relevante que aconteceu comigo. Vou contar para você. 

Mesmo antes de ser mãe, eu tinha uma conexão muito forte com crianças. Pedro era filho de uma amiga minha psicóloga e sempre que a encontrava, adorava passar meu tempo com ele, inventando brincadeiras e jogos infantis. Pedro tinha 3 anos de idade quando, um dia, visitando ele e sua mãe, demos uma abraço forte e resolvi brincar de dar batidinhas no corpo dele, fingindo que ele seria um tambor. Quando minha mão se aproximou das nádegas dele, ele rapidamente gritou: “Não! Bumbum, não!”. Levei um susto e automaticamente me senti constrangida porque sua mãe, em instantes, veio ao nosso encontro. 

Com muita sutileza e um sorriso sem graça, ela me explicou que Pedro sempre foi orientado a não deixar adultos tocarem suas partes íntimas sem a permissão dos pais. Receber a explicação não diminuiu a sensação de vergonha que tomou conta de mim naquela tarde. 

Depois daquele dia, fiquei meio perdida sobre como interagir com ele. Confesso que diminuí muito minha espontaneidade e até mesmo a alegria que tinha ao vê-lo. Mas Pedro seguiu tranquilo. Ainda era amoroso, brincava comigo e me chamava para ver seus livros e jogar seus jogos. 

Aquele momento marcou minha vida, pois mudou o meu olhar sobre o corpo da criança. Até então, eu via a criança como um ser não sexualidado, do qual, se eu fosse sua amiga de confiança, teria permissão para tocá-la, com todo o respeito e carinho. Mas Pedro — especialmente sua mãe que o educou — fez com que eu mudasse minha visão. Agora eu olhava todas as crianças — as quais eu tinha um relacionamento — e pensava como brincar com elas com cuidado e atenção, afinal o corpo era delas, suas partes íntimas e/ou erógenas eram delas e mesmo que as próprias não enxergassem dessa forma, era meu dever fazer isso por elas. 

Além disso, o constrangimento que senti naquele dia se misturou com dores de histórias minhas do passado. O dia em que o menino na escola tocou minha vagina, o homem que esfregou seu órgão nas minhas nádegas no ônibus e a descoberta de uma abuso sexual na infância que eu havia apagado da minha mente. 

Meus pensamentos se debatiam com a ideia de que eu sabia muito bem como um abuso acontecia e mesmo assim não tive sensibilidade e capacidade de perceber que tocar nas nádegas do Pedro era impróprio. Por muito tempo me martirizei mentalmente, até que percebi, após muitas leituras e observação, que mesmo eu sendo vítima de abusos ao longo da infância, isso não foi suficiente para que eu não fosse condicionada a cultura de poder que existe na relação entre os corpo adultos e infantis. 

Uma característica predominante nas famílias é que as crianças devem aceitar receber o carinho de todos que as “amam”, sejam eles parentes ou não. Diante disso, as tias, tios, amigos, primos, madrastas, professores e outros mais abraçam, beijam, tocam os corpos infantis, mesmo quando eles não querem. Brincadeiras são feitas sobre o “peitinho” da menina que está entrando na adolescência, barrigas e bumbuns são tocados, beijos em várias partes do corpo e assim por diante. 

Eu nasci nessa cultura e aprendi com ela a lidar desta forma com as crianças e seus corpos. Até o dia deste encontro com o Pedro. Um alerta interno me fez pensar o quanto não entendia sobre educação sexual como um tema que inclui educar os adultos sobre sua interação com os corpos infantis. 

Usei este dia peculiar para transformar minha forma de pensar, estudar e aprender. Hoje, tenho um menino de sete anos de idade e nossas conversas incluem o quanto seu corpo é seu, que suas partes íntimas não podem ser tocadas sem permissão da mamãe, que se ele não quiser abraçar ou beijar um adulto, pode fazê-lo e que seu corpo não está disponível para ser tocado de qualquer forma, por qualquer pessoa. 

Eu não conheço o pastor e nem tenho provas cabíveis de que o comportamento dele naquele vídeo é um indício de que ele abuse crianças. Mas sei que ele poderia ter utilizado este momento para se educar a respeito do assunto e entender o erro do seu comportamento. 

Infelizmente, esta escolha não foi feita por ele e por mais ninguém que o defendeu. Nenhum deles cogitou afirmar que, ainda que a atitude dele tenha sido inocente, ele poderia se dispor a entender sobre o assunto e mudar a maneira como se relaciona com os corpos infantis. 

Finalmente, quero chamar a atenção, relacionando este caso a história que contei a vocês, de que a forma como tocamos os corpos de crianças não é uma questão apenas de ser culpado ou inocente sobre ser um abusador infantil. 

As melhores intenções não nos dão permissão para lidar com o corpo infantil de acordo com a nossa necessidade de expressar carinho de uma determinada maneira. Como adultos responsáveis precisamos assumir isso e transformar esta cultura inadequada que ainda se mantém em nossas famílias e lares.

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