Mulheres-mães protagonistas da própria história

COLUNA | Eu não conheço os cabelos negros de minha mãe

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Desde que me entendo por gente, lembro de uma escova quente para modelar os fios. O cabelo de minha mãe, que havia dormido enrolado em bob’s sob um lenço de seda colorido, passava pelo ritual de “estica a raiz, abaula a pontinha”. Todo dia a mesma missa.

Para ir ao trabalho, vestia a meia fina, saia de malha e camisa fina. Calçava o salto recauchutado, pois visitas ao sapateiro eram parte da rotina. E findava o ritual com a maquiagem, cujo pigmento da pálpebra ornava com a cor da saia.

Foram anos a fio, o mesmo processo.

E por vezes, uma bisnaga fedida era despejada em cada mecha de seus cabelos, ora por minha avó ou por uma profissional, em alguns poucos momentos do ano. Puxava-se com afinco. Parecia doloroso, mas o resultado parecia valer o suplício.

Depois disso, aquela leve protuberância da raiz desaparecia e cedia ao sorriso da auto estima.

Eu não sabia o porquê, mas era isso que eu queria. Já que as investidas diárias sobre os meus cabelos eram feitos com escova fria, de cerda dura e toque bruto.

Às vezes vertia lágrimas de meus olhos. E a babá me “consolava”, explicando que aquela era a dor da mácula de “nascer com o pé na senzala”. Era o desfecho do cabelo ruim, pixaim, duro que nem piaçava. Eu não gostava, mas entendia que algum dia, seria eu a sentar numa sala com as mechas separadas para serem alisadas.

Passado mais de 60 anos neste plano. Comigo, há pouco mais de trinta. Os saltos de minha mãe cederam aos chinelos da aposentadoria merecida. As saias coloridas e as blusas de seda jazem em algum beco de memória esquecida. Mas, vez ou outra, vejo apalpar a saliência de suas raízes brancas.

Houve um tempo em que a minha militância ardil ousaria questionar seu gosto; já que as minhas madeixas alisadas deram lugar a uma bela trama dreadlock que tem o peso do orgulho de minhas raízes. Ela retrucaria com: “é questão de gosto, ué!”. E eu não a veria além das projeções dos caminhos que trilhei, que só foram possíveis mediante os dela; ainda que eu não conheça os cabelos Negros de minha mãe.

No entanto, é preciso que cuidemos da elaboração dos “gostos” de nossas crianças através de referências positivas da estética negra: livros, filmes e sobretudo, através de falas positivas do fenótipo negro no seio familiar. Pois a negação da negritude começa na família, como bem diz Lia Schucman; sobretudo no que entendemos como famílias inter-raciais. E isso é tão violento, ou mais, quanto apanhar.

Cabe a nós, contemporâneos desta geração de pais, interromper a perpetuação dessa narrativa de dor e esquecimento.

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