Mulheres-mães protagonistas da própria história

Uma carta para mães de crianças não-negras

Uma carta para mães de crianças não-negras

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Querida mãe,

posso dizer que existe uma similaridade na experiência materna que compartilhamos.
Eu e você experienciamos a germinação da maternidade, e com isso tantas e tantas reações naturais e sociais vivemos. 

Ambas encontramos em meio a essa viagem o amargo dos enjoos matinais, as cobranças de aplicações maternas externas quais demandam alta assertividade, as dúvidas da inexperiência, o estranhamento do próprio corpo, as sensações permanentemente em alta voltagem – muitas vezes com escapes do mundo real -, um êxtase incomum em qualquer outro momento das nossas vidas.

Nós duas estivemos ligadas, como num metaverso, a uma realidade na qual nutríamos, protegíamos, carregávamos, sentíamos e nos comunicávamos com um ser humano em formação, alguém formado do nosso próprio sangue, da nossa própria carne qual ainda não ouvimos sequer a voz.

E como expressar a primeira ultrassonografia, ouvir os primeiros batimentos? Cada exame ultrassonográfico nos dizendo que estava se aproximando a data… e do que estamos falando? Bem, me parece que estamos falando de um reencontro de almas, algo além da carne e do corpo físico, uma ocasião excepcional nas nossas vidas; um dia cuja espera nos fez idealizar um mundo novo apenas para recebê-los, um mundo pelo qual a partir de então, ambas de nós trabalharíamos duro e da forma que pudéssemos para um ambiente social mais seguro do qual nós vivemos até então.

É disso que estamos falando aqui.

Assim como os demais seres, a maternidade marca um momento de passagem na vida interior, exterior e de impactos socioambientais. 

Há o que é tomado pelo romantismo teórico deslumbrante e há o que realmente é vivenciado.
Falando sobre esse fenômeno da experiência materna no momento em que ele acontece, não poderia deixar de mencionar uma reflexão traga pela memorável Maya Angelou em seu livro” Carta a minha filha”, onde ela relata que certa vez precisara deixar seu filho ser criado  por outras pessoas para participar de uma turnê, onde evidenciou quão difícil seria ‘criar um menino negro para ser feliz e livre em uma sociedade racista’, mencionando o fato de isso lhe deslocar da sanidade e levá-la a um momento a pensar em poupar o Guy (seu filho) e ela mesma de viver essa experiência inevitável, já que suas inúmeras aptidões seriam incapazes de salvaguardá-lo. 

Ao despertar desse momento, Angelou nos remete a uma nova reflexão quando, mediante a sua busca de socorro em uma clínica psicológica, ela se questiona sobre os recursos estruturais sentada em frente ao psicólogo:

“Como aquele rapaz branco privilegiado seria capaz de entender o coração de uma mulher negra doente de culpa por ter deixado seu filhinho negro para outras pessoas criarem?”,” […]olhei para ele outra vez e comecei a chorar”.

Obviamente, ter lido esse livro da Maya, especificamente esse capítulo, após o evento da maternidade, me inspirou para que eu escrevesse esta carta. Bem como ser uma negra mulher, nascida de uma negra mulher e neta de negras mulheres. 

Também me inspirou toda a convivência com todas as mães de crianças negras, seus relatos e experiências empíricas. 

Mães que perderam os filhos que geraram, amaram e educaram muitas vezes para estado, muitas vezes para a violência, muitas vezes para as drogas e muitas outras vezes pela obrigatoriedade da fome em detrimento da presença materna. E todas essas vezes por alguma contribuição da estrutura racial que vivemos.

Bem, aqui quero convidar você – ainda no seu lugar de branca mulher, mãe – a pensar quais são os maiores desafios da sua maternidade e até onde eles desafiam a humanidade dos seus corpos.

Mulheres negras em vivência da faculdade se ausentam da vida dos seus filhos ainda entre os 3 e 5 anos para realizar o grande sonho da faculdade e logo retornam, desistindo de tudo, pois sua família não dispunha de estabilidade social e financeira para alimentar mais uma boca e ter mais alguém para manter vivo. Além de que, em muitos desses casos, pode-se notar a mulher negra sem alguma rede de apoio para contar.

Outras sangram diariamente para sobreviver as controvérsias desse ambiente chamando universidade e finalmente ao pegarem o diploma, ainda não conseguiram se alocar no mercado de trabalho de sua área, ou nem perto disso. 

E muitas, mais do que possamos contar com os dedos, nunca conseguiram performar uma carreira profissional ou serem respeitadas em seus locais de trabalho, e que esteja dito, não por falta de capacidade intelectual ou vontade, mas por falta de oportunidades e reconhecimento mínimo de suas faculdades intelectuais e orgânicas.

Sabendo que nós, negras mulheres, somos atravessadas pela maternidade muito mais cedo do que planejamos e quase todas às vezes sem ter se preparado financeira e emocionalmente para viver esse grande divisor de águas – o que se estende na realidade destas crianças, adolescentes e futuros indivíduos adultos – temos o direito de mensurar então, quanto se tornar mãe de um outro indivíduo pode ser conflituoso para uma jovem negra.

Quantos conflitos internos ainda não resolvidos são massacrados para sobrepor a imensa atenção que a gestação impõe?

Convido-as a refletir a partir da situação financeira estrutural de pessoas negras no Brasil, a partir do atravessamento histórico e não tão distante que foi a escravização de pessoas africanas e descendência, a desumanização dessas crianças e adolescentes que não tiveram direito à infância, à educação, devemos refletir sobre dores que mães negras escravizadas jamais puderam reivindicar ou curar por seus filhos vendidos como mercadoria.

Então você se pergunta, o que eu, mãe branca do século XXI, tenho a ver com isso?

Você não segurou o chicote, nem vendeu pessoas negras, mas com certeza os privilégios que você colhe hoje como pessoa branca, são frutos da estrutura escravista que vitimizou milhares de pessoas pretas ao genocídio em massa, bem como todo o gozo de estabilidade social, econômica, política qual foi projetado pelos vossos ancestrais colonizadores. 

É de extrema importância explicitar que o racismo é sempre estrutural, como uma das teses apresentadas cirurgicamente pelo intelectual Silvio Almeida em seu livro Racismo estrutural:

“O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea.” 

Dito isso, a reflexão crítica e responsável é necessária para que como pessoas brancas, vocês não continuem desumanizando pessoas negras nos dias atuais.

Isso é muito importante para pensarmos de forma nua e crua em como nos relacionamos com a realidade de pessoas negras, mulheres e mães cuja cor da pele não acessa os privilégios universais reservados a pessoas brancas. Privilégios como planejar a maternidades antes dos 30, ter segurança da constituição de família com genitor presente, variáveis redes de apoio, acompanhamento gestacional de qualidade, fomento à educação nascituro, segurança alimentar básica para gestante, direito a afeto e não violência durante o momento do parto. Todos esses pontos que somam a dignidade que as mulheres que gestam e maternam são dificilmente acessados em sua plenitude por nós, mulheres negras. 

Há muitas variáveis na desumanização de mulheres negras, sobretudo, nesse momento em que o fervor das emoções é indescritível, quanto a gestação e quanto a maternidade como um todo e não necessariamente que tenham gestado em seu próprio útero, onde o cerne da palavra desumanização reflete de forma geracional nas nossas narrativas.

Muito bem, grosseiramente, vamos descrever este cenário. 

Uma jovem mulher negra mora com sua mãe, de onde provém toda a renda familiar. Divide seu quarto com seus irmãos mais novos, no melhor dos casos, apenas com um irmão. Está cursando o ensino médio, quando a realidade permite, tem sonhos de adentrar em uma universidade, mas, na verdade, está ansiosa para finalizar o 2° grau e conseguir um emprego de carteira assinada que lhe possibilite a ser um agente mais ativo nas finanças da casa. Às vezes lembra das ocasiões que foi alvo de piadas ou de rejeição por não ser o padrão de criança/adolescente aceitável e então isso forma um nó na garganta, dói. No âmago de tudo, um sentimento vai acordando, sendo compreendido; eu sou uma preta mulher.

E então o teste de farmácia dá positivo, sim, a nossa jovem está grávida. 

Medo, incertezas, sensação de insuficiência, de culpa. Existe um tímido sentimento de felicidade, mas nesse momento ele parece está sendo esmagado por tantas dúvidas. 

Nasce uma mãe preta. E renasce também uma vigilância contínua contra a manutenção da negligência racial sobre essa nova vida. 

Para uma mãe preta, o fato de que seus filhos possam ser afetados pelas mesmas violências que seus corpos passaram em algum momento das suas vidas, sem dúvidas é uma ameaça perturbadora. Uma ameaça que se deita e se levanta diariamente com uma mãe preta.

Gostaria que esse cenário fosse uma exceção à regra, mas a primeira vez que li Carolina Maria de Jesus falando politicamente em seu diário, na década de 50 sobre como a falta do que dar seus filhos para comer lhe torturava, sobre a falta de dignidade qual eram expostas às crianças na favela, sobre seus esforços como mãe que criara seus filhos sozinha para que frequentassem a escola, tivessem calçados, roupas para se vestir, e o mínimo de instrumentos para acessar uma realidade mais favorecida. 

Quando nasceu a Vera eu fiquei sozinha aqui na favela. Não apareceu uma mulher para lavar minhas roupas, olhar meus filhos. Os meus filhos dormiam sujos. Eu fiquei na cama pensando nos filhos, com medo deles irem brincar nas margens do rio. Depois do parto a mulher não tem forças para erguer um braço. Depois do parto eu fiquei numa posição incomoda. Até quando Deus deu-me forças para ajeitar-me. P.56

[…] Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar- nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa pensando: Será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo? P.169

Não seria novidade salientar o quanto nossos filhos definem nossas prioridades e sim, eu preciso dizer, coibi os nossos anseios também.

As nossas preocupações diárias estão relacionadas com romper o ciclo de violência na vida dos nossos filhos, assim como nossas mães lutaram, hoje continuamos lutando contra a violência da fome, da negligência, do descaso, da ridicularização, do estado, da injustiça, das mídias, do sistema carcerário, dos hospitais, dos espaços pensados para as pessoas brancas e também contra o que ainda nutri muitas pessoas brancas da colonização até os dias de hoje.

Isso diz muito sobre a mãe preta, ou sobre esse estereótipo que nos foi classificado.

As mães de crianças não brancas, enfrentam diariamente incontáveis dilemas de insegurança à vida e integridade básica aos corpos de seus filhos e como isso impacta nas nossas vidas sociais.

Dito isso, podemos começar a refletir onde as nossas experiências quanto mães se distanciam e como nos relacionamos com essas verdades.

Desde que uma criança não branca frequentou uma escola em formato tradicional até os dias de hoje, é evidente como o racismo atua e como ele nos afeta, desde os primeiros anos de nossas vidas.

Crianças negras continuam sofrendo racismo todos os dias nas salas de aula, nos parques de diversões e em qualquer lugar do mundo onde convivam com outras crianças e adultos brancos.

Isso parece inflexível demais para ser dito, mas acredite, a sociedade racista que temos tem muita responsabilidade pelas dores e desequilíbrios da população negra infanto-juvenil; distúrbios de personalidade, depressão, traumas, estímulos de agressividade… Fome, criminalidade, drogas, suicídio.

E sobre isso refletimos novamente o pensamento de Silvio Almeida, o racismo é estrutural.

Mãe criança não negra, precisamos que seu filho não seja um adversário desumanizador dos nossos filhos.

Precisamos que você enquanto mãe consuma empreendedorismo negro, escritores negros, músicos e arte negros para que essa convivência reflita no dia a dia de suas crianças não negras, que você tenha capacidade de fazer reflexões além da sua realidade e através dela também, que seja uma agente na construção de ambientes sadios para crianças não brancas.

Precisamos que você ensine o seu filho não negro quão privilegiado ele é por este mundo no qual vivemos ter sido criado para ele, bem como todos os espaços.

Você mãe, precisa pensar com responsabilidade que as crianças não brancas da sala na qual seu filho estuda, podem estar sendo vítimas de racismo recreativo todos os dias como alvo de piadas sobre cabelo, nariz, dentição ou apenas pelo tom de sua pele. Precisamos que você garanta que o seu filho não seja um agente ativo em tais práticas.

De fato, você pode não ter segurado o chicote, nem comercializado corpos de pessoas negras, mas o que você está fazendo hoje para colaborar na reparação de tais feitos? Como tem rompido com ciclo de repetições de desigualdades?

Se você ainda não sabe por onde começar, vou dar uma dica; comece dentro de sua casa, de sua família, de sua bolha. Comece criando e educando suas crianças brancas para não reproduzirem racismo com nossas crianças nas escolas, nas ruas, nas brincadeiras e piadas que ridicularizam pessoas negras.
Fale sobre desigualdades com sua criança, eu sei, você só quer o proteger de lidar com situações duras tão cedo… Mas essa proteção a qual você protege sua criança é um luxo ao qual não podemos propiciar para as crianças pretas.

Enquanto você acha muito cedo para conscientizar sua criança branca, nós estamos ensinando nossas crianças a como se comportar na rua quando passar uma viatura ou mesmo quando vai ao supermercado comprar biscoitos.

Isso não é sobre proteger crianças, é sobre privilégios que crianças brancas possuem de desfrutar plenamente as suas infâncias.

Se você, mãe de crianças não negras, não consegue compreender e lutar contra isso, deve começar a se perguntar qual o compromisso do seu antirracismo com a população negra.

Por Ifasunlê – @ifasunlescritora

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