Mulheres-mães protagonistas da própria história

A casa monstro

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Há muito me equilibro entre trabalho, espaço pessoal, tempo pro filho, projetos de mudança de vida e esse massacre diário que as obrigações domésticas me fazem. Essa que preciso ser todos os dias, a “Dona de Casa”, é minha algoz – minha e de boa parte das mulheres, que na média gastam 2x mais tempo com trabalho doméstico do que os homens (mesmo trabalhando fora). Imagino essa personagem com vários e longos braços, óculos de lupa, sapatos de pano de chão, mãos brancas e ressecadas e um olhar exasperado. Aos poucos se tornaria um monstro, escravizado por esse serviço de casa eterno.

Como podem ver, a Dona de Casa me tortura e me submete. Luto com ela todos os dias, às vezes venço, muitas vezes perco. Ter filhos e família é ganhar de presente um megacombo: “manter a casa funcionando continuamente”. O feminismo explica isso com a Teoria da Reprodução Social – reprodução sendo tudo o que permite manter a vida (cuidado, higiene, saúde, alimentação, moradia, descanso, educação etc). Por um azar histórico essa manutenção diária da vida coube a nós, mulheres. No caso do marido, ele pode dividir com você essa função, ou ser apenas mais uma vida pra você manter. Às vezes é melhor ficar sem.

Voltando à casa, manter a vida se desdobra em mil tarefas. Uma casa que favoreça a sobrevivência humana é como resolver uma equação de vários graus. Calcular o que comprar no supermercado, na mirabolante tarefa cada vez mais difícil de ter comidas saudáveis e baratas em casa; picar, descascar, preparar, tudo isso em recipientes limpos que você vai ter lavado. Tenho aprendido que, à medida que os bebês crescem, começam a ficar mais esfomeados (= mais comida a preparar). Também se descobre que tem comidas que “rendem” e agradeço muito à sabedoria popular pelo feijão tropeiro, pelo “feijão rico”, o baião de dois e todos os cozidos de carne com legumes (e aos chineses pelo frango xadrez).

Alguém pode dizer: mas comer é algo bom, cozinhar tem uma recompensa! Até seria se você não tivesse que lavar as vasilhas depois. Eu não me importaria nem um pouco em ter restaurantes populares em cada bairro pra almoçar e jantar todo dia – aliás, uma ideia socialista que muito me encanta.

Porém na casa, mais do que na comida, está a verdadeira tortura, porque nela impera a “lei do retorno”: o que você NÃO faz volta pra você depois. Tem vida a casa. Você descobre que moscas podem se tornar resistentes ao frio e ir morar na geladeira suja. As formigas podem se multiplicar entusiasmadas pelos farelos que você não varreu (uma vez contei 5 espécies diferentes de formiga em casa). Uma panela esquecida sem lavar pode ser a moradia de coisas inimagináveis e difíceis de tirar.

Não tenho dúvidas de que, se vivêssemos num mundo não machista, todo esse trabalho braçal diário já teria sido robotizado ou, em alguns casos, seria coletivo ou estatal. Nós mulheres teríamos mais tempo de lazer, convívio com família e amigos, estudos, esportes e arte. As que gostam de cozinhar, seriam cozinheiras ou cozinhariam nos momentos de lazer – e não por obrigação.

Manter a vida seria uma tarefa coletiva, e não das mulheres ou da família trabalhadora, que hoje arcam sozinhas com todo o peso. O fato é que, com a possibilidade real de ocupar outros lugares e funções sociais mais gratificantes, as mulheres seriam muito mais incríveis do que já são…


Autora: Lívia Furtado é mãe, jornalista e bancária em BH/MG. Publica o blog jornaliviablog.blogspot.com com artigos e crônicas sobre maternidade, feminismo, política e literatura. Instagram: @liviacarvalhofurtado. Twitter: @jornalivia.

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