Mulheres-mães protagonistas da própria história

Tribos e maternidade

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Dizem que é preciso uma aldeia para criar um filho. E é costume saudável de alguns povos considerar bebês e crianças como responsabilidade comunitária. Todos pegam no colo, alimentam, acarinham, educam, xingam, conhecem. Porque todos são parentes, mães e pais em algum grau. O futuro daquele ser pertence a todos. Acho bonita essa forma de ver, apesar de ser tão distante da nossa realidade urbana, cristã e ocidental – que tem como base a família nuclear e a mulher, a figura central no que diz respeito aos filhos. Por causa disso, ser mãe em nossa sociedade é uma experiência cheia de culpa e solidão.

Mas olhando em torno, e pensando também em como criei meu filho (ou como nós, brasileiras, em geral criamos), vejo que ficou um resquiciozinho de tribo, dispersa, cheia de vazios, mas ainda assim persistente e atravessando séculos. É porque a maternidade precisa de redes de apoio ou fica quase impossível de se vivenciar (a não ser que se tenha dinheiro, o que não é o caso aqui). Precisamos da avó, do avô, da vizinha, da tia, da amiga, da professora – um círculo em sua maior parte feminino, carregado de opressão, mas que é nossa segurança diante de um Estado ausente e ineficaz em proteger a maternidade e a infância.

Aqui o crescer de nossos filhos é meio compartilhado, por necessidade material e emocional também. Em geral, com a família próxima fica aquele cuidado cotidiano. No caso do meu filho, mesmo morando em casas separadas, suas três avós e seu único avô, além de tios e tias, sempre nos ajudaram na rotina, como dar almoço, pegar ou levar à escola, ficar uma parte do dia, etc. É o mais comum na maioria das famílias brasileiras, com tantas crianças criadas quase integralmente pelos avós.

E indo mais atrás, penso que eu e o pai do meu filho sempre tivemos essa necessidade de tribo – uma espécie de carência, de pedido de ajuda naquele começo tão incerto. A prova máxima disso é que tenho um álbum inteiro de fotos chamado “visitas do primeiro mês”! Pro nosso apê minúsculo convidávamos parentes, amigos, todo mundo que quisesse conhecer o Eric. É engraçado pensar nisso hoje, porque mesmo antes da pandemia não se usava mais receber tantas visitas no pós-parto, creio eu.

Lembro-me também de sairmos muito com o bebê a tira-colo – dormindo no escurinho dos panos do sling, seguro no calor do nosso corpo. Pegamos ônibus, fomos ao centro da cidade, ao mercado, em casas de amigos, reuniões e festinhas. Nós, mãe e pai, também precisávamos nos sentir seguros, acolhidos. E fomos.

Então nós tínhamos essas “tribos” em torno e, bem cedo, Eric entrou em outra bem especial. Na verdade, adentrou uma maloca (no tupi, a casa comunitária de uma aldeia, onde ocorrem cerimônias e reuniões da tribo). Antes de completar dois anos, foi sorteado para o período integral numa Umei, unidade municipal de educação infantil, próxima de meu trabalho. Obs.: o período integral foi uma “p…” sorte e infelizmente se tornou cada vez mais raro nas Umeis da cidade.

Mas então, a partir daí e nos nove anos seguintes, o ensino público municipal foi a outra casa do meu filho. Na escola ele passou a maioria das horas do dia, fez seus melhores amigos, vivenciou vitórias, mágoas, brigas, frustrações, formou sua personalidade, aprendeu um pouco sobre a vida.

Eu me sentia acolhida por ver que meu filho era feliz ali. E uma parte de mim ficava aliviada por poder dividir com o poder público, e com profissionais competentes, essa tarefa tão difícil de formar um ser humano (acho que o ensino municipal, em BH, ainda é muito diferenciado, mesmo com todos os problemas e crises ocorridas nos últimos anos).

Tive que admitir algumas vezes que na escola sabiam mais do Eric do que eu. Eles conheciam seu caráter, sua emotividade, seus choros por revolta ou injustiça – e até os meus choros também. Sim, eu já chorei algumas vezes dentro da escola e fui parar na coordenação. Mas a cada problema (e houve), eu confiava mais na equipe escolar e sentia segurança no que estavam fazendo.

Hoje reflito que por causa dessas redes em nosso entorno, que inclui também a vizinha, os colegas de futebol, as moças da padaria, o porteiro da escola, é que meu filho tenha crescido seguro de si e mais livre (depois de uma certa idade e considerando os padrões de um bairro movimentado, de classe média, numa metrópole).

Nenhuma tribo é perfeita, mas quando falta é que percebemos seu valor, né? Nesta pandemia, nós mães ficamos bem perdidas porque parte de nossas redes se desfizeram – seja por causa do isolamento necessário, seja devido aos que faleceram de Covid. Uma de nossas tarefas será nos refazer, reconstruir famílias, laços, encontrar de novo essas tribos urbanas imperfeitas que são nosso apoio numa sociedade tão desigual.


Autora: Lívia Furtado é mãe, jornalista e bancária em BH/MG. Publica o blog jornaliviablog.blogspot.com com artigos e crônicas sobre maternidade, feminismo, política e literatura. Insta: @liviacarvalhofurtado, twitter: @jornalivia

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