Mulheres-mães protagonistas da própria história

“Olhos Que Condenam”: a maternidade negra em perspectiva

“Olhos Que Condenam”: a maternidade negra em perspectiva

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Sou muito chata para assistir qualquer coisa. Qualquer coisa, MESMO. Por isso, acho que não desfruto tanto da Netflix quanto gostaria. Foi num desses dias em que Gael estava na aula e eu de folga, que o streaming me sugeriu “When They See Us” (Quando eles nos vêem, em tradução livre) ou “Olhos Que Condenam”, na versão para o Brasil. Li a sinopse, me interessei, só 4 episódios, apertei o play.


Para quem ainda não viu (ou não leu nada sobre), a minissérie conta a história real dos “Cinco do Central Park”. Cinco adolescentes negros do Harlem condenados injustamente pelo estupro de uma corredora branca em 1989 e somente absolvidos em 2002.


A PARTIR DESTA LINHA, CONTÉM SPOILER SIM

Começaram 1h10, em média, de muitos golpes psicológicos e socos no estômago. Pausei nos 35 primeiros minutos. Respirei. Estava difícil de aguentar. Crianças sofrendo a truculência da doação policial dentro de uma delegacia, assinando confissões forjadas, largados à própria sorte porque desafiaram a linha da cor da pele… ousaram ser negros. Acredito que qualquer pessoa sensível se abale profundamente com isso, mas para quem é preto, é uma dor mais próxima. Para quem é mãe preta… A dor te encosta. Chega a te tocar. 

WHEN THEY SEE US

As cenas que mais me doíam eram as delas. Ansiosas na noite em que seus filhos foram pegos pela Polícia, preocupadas, telefonando para a casa dos amigos. Sem dormir. Recebendo a notícia da delegacia. Acompanhando os depoimentos. Vendo seus filhos assumirem o que não cometeram. Às vezes ausente e se culpando porque naquele minuto do interrogatório, ela não estava ali. Por que ela não estava ali? 

Comecei o segundo episódio só no outro dia. O julgamento. A angústia de acompanhar cada palavra da promotoria com medo; do advogado, com esperança. E tentar analisar cada feição do júri se agarrando a qualquer esperança que os fizesse enxergar. A agonia de ver que lentamente, não existiam provas, não existiam evidências, só existiam mentiras, e que ainda assim o indulto racial não os salvariam. Ouvir “culpado”. Várias vezes. Elas fechavam os olhos nas cenas. Eu fechava junto com elas. Era uma dor difícil de assimilar e que transpassava a tela da TV. Ela vinha diretamente na minha direção. 

O terceiro episódio foi de total protagonismo delas, na minha opinião. Enquanto os filhos cumpriam sentença, elas agonizavam a sentença junto com eles. Nas visitas, no aperto do salário para depositar qualquer coisa para o filho ter o que comer de melhor. Fingir que tudo anda bem, que a vida anda bem. Não andava. Elas perdiam seus empregos pelo preconceito.

Suas vidas eram minadas pela esperança da volta dos filhos. Panfletagens, manifestações. Eram cinco dores. Mas daí, vem o egoísmo da dor. — Quero meu filho solto — . Por um minuto, eu paro de pensar na dor da minha companheira mãe. Quero saber do meu filho. Mas ele passa. Você volta a abraçar aquela que sofre junto contigo e tenta dividir a dor que é só sua. Talvez doa menos.


Uma das cenas que mais me marcaram foi quando a mãe de Antron McCray vai visitá-lo no reformatório. Ele diz que tem pesadelos, que ouve passos, ao que ela responde mais ou menos assim:


“Se você ouvir esses passos de novo, filho, sou eu tentando te trazer pra casa. Sei que parece que o mundo te odeia, mas eu te amo pelo mundo inteiro. Se você chora, eu choro. Se você sofre, eu sofro. Se você está livre, eu estou livre”


E quando ouvi essa fala, me senti tão prisioneira quanto a mãe de Antron McCray, abandonada pelo marido que não aguentou o peso da condenação do filho, ela foi, sozinha, sua base. Sofrendo os anos que ele amargou no reformatório. Esperando-o na porta quando ele foi liberado e ela, finalmente, se sentiu livre outra vez.

No quarto e último episódio, eu não conseguia mais parar de chorar. Dos cinco do Central Park, Korey Rise foi o único a ir para uma penitenciária adulta, com 16 anos. E, meu Deus, como eu chorei com aquela mãe. Mais distante do filho do que todas as outras, ela sofria por não poder vê-lo mais. Ele sofria com aquela ausência, e em suas tentativas frustradas de se aproximar mais da mãe pedindo transferência, sempre acabava mais longe.

Ela fez o que restava fazer. Pediu cartas para o filho aos outros meninos, se apegou na religião, buscou Deus como quem busca qualquer coisa na qual faça sentido se agarrar. Preencher o vazio das visitas impossíveis. E em uma das cenas em que ela grita o desespero de criar sozinha dois filhos e só poder contar com si mesma, eu vibrei com ela e chorei com ela. 

Quando os homens são finalmente absolvidos, em 2002, após a confissão do verdadeiro estuprador, todos vibram com eles. Eu vibro com elas. Cada lágrima que derramaram têm a sensação de que valeu à pena a vida por aquele momento.

A série em si traz diversas problematizações importantes para o debate acerca do encarceramento do povo negro, do racismo policial, do mito do estuprador negro. Mas, além disso, ele traz uma profunda reflexão das mulheres negras, mães desses meninos. Da solidão da mulher negra, a partir da mãe abandonada pelo pai em todo o julgamento de seu filho e na prisão dele também.

Da mãe solo que é amargurada e triste pela solidão nesse processo de criação de crianças negras num bairro negro e periférico, podendo perdê-lo para as drogas ou para o tráfico, ou para a violência policial, a qualquer minuto.

Da mãe que é obrigada a enxergar em seu filho um criminoso condenado sabendo que ele não cometeu crime algum. Mas tendo certeza de que a condenação é por ele ser preto.

Sou mãe de um menino. Negro. Que se reconhece como tal. Sou uma mãe negra.

E o pavor que se sente quando se vê essa série é desesperador. Saber que mesmo estando no Brasil, mesmo 30 anos depois, ainda podia ser meu filho.

Ainda podia ser seu filho.  Porque nossos filhos são coagidos, encarcerados, lidos como bandidos em qualquer lugar do mundo. 

Não sei se recomendo essa série. Acho ela necessária. MUITO. Todo branco deveria assistir. Toda mulher branca deveria assistir. Não sei se toda mãe preta.

Não sei quanto o psicológico dessa mãe aguenta. Não sei se é tão necessário assim pra nós, porque já convivemos com essa realidade, já sabemos dela, não há nada de novo. Mas acredito que vê-la é um tributo aos Cinco do Central Park. É um grito de justiça para o povo negro. E é um abraço em cada mãe que sofreu com a criminalização e encarceramento do seu filho sabendo que ela só existiu pela cor que deram a ele. 

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