Mulheres-mães protagonistas da própria história

Mama: uma crônica sobre a realidade do amamentar

Mama: uma crônica sobre a realidade do amamentar

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Você vai ser a exceção. Assim como a sua prima foi. Não vai ter fissura nem mastite, o leite não vai empedrar, sua produção vai ser boa. Você fez o curso, a professora te parabenizou, “muito bem”, enquanto você engatava a boneca no peito de almofada. Você entendeu a pega certa, boca de peixe.

O parto.

(Não se sabe onde você está).

Seus braços estarão fracos e o bebê todo melado, escorregando. Colocarão um pano, você não entenderá muito bem onde; e seu filho vai encaixar no seu peito. É uma mordidinha fina, quase uma cócega, os lábios abertinhos, a pega tá certa, né?, “Tá sim, olha só, direitinho” — a enfermeira antes de jogar no lixo o lençol ensanguentado sobre o qual você pariu.

(Nas horas seguintes ao parto também não se sabe onde você está).

O seu filho está ali. No peito, no colo, no berço, na cama, no peito, no colo, no berço, na cama, dormiu, acordou, no peito, no colo, no berço, na cama, nos braços da sua sogra, nos ombros da sua mãe, no peito, no colo, no berço, na cama, dormiu, acordou, no colo do pai, nas mãos da pediatra, no peito, no colo, no berço, na cama, entre suas pernas, no colo da enfermeira, no peito, no colo, no berço.

Às 02h28, vai arder um pouco enquanto ele mamar. Você vai lembrar que no curso disseram pra passar o próprio leite nos mamilos, fará isso, fechará a camisola e assim tirará o leite de cima dos mamilos. Às 6h43, você vai acordar com o choro do bebê. Mas não vai querer que ele relacione o peito ao momento de sofrimento, então vai esperar que se acalme um pouco antes de oferecer. Ele não vai abrir tanto a boca quanto antes e vai doer um pouquinho, tipo uma mastigadinha. Tudo bem, meu amor, pode mamar mesmo assim, coitadinho.

Às 14h, sua obstetra vai te dar alta e, ao olhar seus mamilos, sugerir que você passe mais leite neles. “Quando chegar em casa toma um banho de sol e passa pomada de lanolina”. Para se defender você vai explicar que a pega tá boa, só tá ardendo um pouco quando ele mama. “Quando o leite descer, entre amanhã e depois, vai melhorar”. Você acreditará.

Ao chegar em casa você vai sentir uma aura à sua volta, mas vai ser só sua pele estranhando a sensação de conhecido da casa. Na poltrona que a vendedora falou ser a mais vendida para amamentação, os braços vão ser muito altos e distantes — você não vai saber ao certo em relação a quê. Quando ele engatar a boca no seu peito esquerdo, você vai fazer aquela força que fazia no ballet quando a professora gritava, “bumbum pra dentro!”. Vai doer e vai dar pra ver pela sua cara.

Você vai apertar os peitos, espremer os mamilos, e o leite que sair espalhar nos bicos machucados; tudo isso vai demorar e não vai mais ter sol. Cadê a pomada? Agora vai melhorar.

Às 23h03, sua cama não reclina como a da maternidade e sua cervical vai doer. Quando ele pegar o peito, você vai sentir bastante dor e fazer força pro seu períneo rasgado que nem começou a cicatrizar entrar pra dentro. Você não vai respirar por um minuto — aproximadamente. Seus olhos vão lacrimejar, e se você for das que vocaliza, vai gemer alto. Se não for, também.

Quando ele finalmente adormecer e sair do peito, você vai acender a lanterna do celular, iluminar seus mamilos e perceber que em contraste à pele avermelhada nos bicos tem umas gosminhas brancas, em um mais do que no outro. Você vai passar leite e pomada, na dúvida se adiantam, e deitar sem blusa.

À 1h16, tudo vai se repetir, salvo seu marido, que dessa vez vai roncar alto quando o bebê estiver pegando no sono. Não vai interferir em nada nesse sentido, mas você vai sentir ódio — de um tipo novo.

Às 3h57, quando você abrir o olho, o bebê vai estar na sua cara, segurado pelo seu marido em pé ao lado da cama. Não vai dar tempo de se perguntar como eles chegaram ali sem você escutar, porque seu filho vai abrir o berreiro e você vai se sentar bem rápido. Dessa vez vai aproveitar o berro que deixa a boca mais escancarada. Você fechará os olhos sem perceber, prenderá a respiração sem perceber, e uma lágrima cairá do seu olho direito. Quando sentir ela escorrendo pela bochecha, lembrará de si mesma 72 horas antes se imaginando exceção. Muitas outras lágrimas virão.

Às 9h40, seu filho vai golfar e o body dele ficará vermelho. Você vai ligar pro pediatra, que responderá que é seu sangue, do seu peito, que ele mamou pelas fissuras do bico. Esse tipo de culpa também será nova.

Na manhã seguinte você acordará com febre. Sentirá seu pescoço latejar até a cintura. Suas costas doerão de cima a baixo. Você não vai conseguir andar muito e quando o fizer vai ficar se apoiando nas paredes com falta de ar. Sentada na tampa do vaso sanitário vai ligar para sua obstetra, que dirá ser a apojadura, “O leite tá descendo, é um bom sinal”. No espelho você vê olheiras escuras embaixo dos olhos e, coroando, o cabelo oleoso.

Nas semanas seguintes chorará no banho. E ainda mais toda vez que a água quente pingar, sem querer, nos bicos dos peitos. Também chorará alguns finais de tarde de raiva da sua sogra, mãe, irmã, amiga, com filhos e sem, que perguntaram ao longo do dia “Ele já vai mamar de novo?”. Sem saber, esse choro também será de medo porque o bebê não terá golfado tantas vezes quanto o habitual e você achará que é porque o seu leite está secando e ele passando fome — mas não falará isso em voz alta. Seus choros por vários motivos também serão uma novidade, mas te dirão que isso não é depressão pós parto.

Você gastará mais dinheiro do que esperava em consultorias de amamentação, bicos de silicone, consultas a pediatras, sutiãs de amamentação, absorventes para seios, tipoia para amamentação, pomadas para candidíase mamária que nem sabia existir, almofadas de amamentação, rosquinhas para proteger os mamilos, e cursos de amamentação e sono aos quais não assistirá porque estará com muito sono.

Alguns meses depois não sentirá mais dor.

Uma noite você será surpreendida por um calor diferente do causado pela amamentação e, quando deitar exausta na cama, vai sentir, finalmente, vontade de transar. Preocupada com a vagina transformada sabe-se lá como pela cabeça do seu filho, quando seu marido tocar no seu mamilo direito você vai dar um pulo de susto e não saber se o que sente é tesão, dor, saudade, ofensa ou só muita sensibilidade mesmo.

Dias depois, quando você estiver amamentando seu filho pra ele cochilar, às 12h47, enquanto remói a culpa por tê-lo tornado dependente do peito para pegar no sono, ele vai treinar o movimento de pinça recém-aprendido no seu outro mamilo e você vai tomar outro susto e não saber se o que sente é tesão, dor, saudade, ofensa ou só muito mais sensibilidade mesmo.

Em algum momento você vai desmamar. Mas aí não se sabe quem você será.


Autora: Gabriela Rocha é de Recife mas mora em São Paulo. Formada em Direito e Jornalismo trabalha como preparadora, revisora e escritora. É feminista e mãe da Teresa e do João. Instagram: @gabimmrocha.

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