Feminismo a gente traz de casa! 

 Feminismo a gente traz de casa! 

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Lembro que quando era pequena, cinco, seis anos, adorava brincar com conjuntinhos de chá, tinha vários bulezinhos, xícaras, pires. 

Uma vez, entretida, com toda aquela linda mesa posta no chão do meu quarto, de repente, sou surpreendida por aquelas pisadas quebrando minhas xicarazinhas… era um primo meu. 

Era rotina aquelas visitas que acabavam em quebradeira, assim como a mãe dele repor meus brinquedos quebrados e ele voltar a fazer, porque menino é assim mesmo.

Cresci atravessada por dois aspectos que se ressaltam nessas minhas vivências infantis: “atividades domésticas e culinárias são coisas de mulher, ela nasce para isso e é feliz com isso, plenamente realizada”, e “homem é violento, é da sua natureza, não tem como mudar.” 

Hoje, ainda que entenda que “não se nasce uma mulher, torna-se uma”, não havendo uma essência da qual emergimos, mas uma vida real que vai nos constituindo, a relação entre as mulheres e o trabalho doméstico, por certo culturalmente construída, tem seu principal aporte na ideia de naturalização dessas funções.

Nesse sentido, as posições de sujeito atribuídas a homens e mulheres instauram socialmente a diferença e a hierarquia entre os gêneros masculino e feminino, as quais se perpetuam com o passar dos tempos, muito em razão de as próprias mulheres absorverem esses discursos como verdadeiros. 

Com efeito, a cumplicidade feminina contribui para a sua própria opressão e para as desigualdades entre os gêneros feminino e masculino.

Então, minha mãe, uma dona de casa “raiz”, como costuma dizer minha irmã, não era uma feminista. Crescemos sendo educadas para saber como se arruma uma casa, varrer, passar pano no chão, tirar o pó – mas eu tirei ontem, costumávamos argumentar, sendo contrariadas imediatamente: todo dia tem pó! 

Nesse mesmo sentido, seguiam seus contra-argumentos aos ideais adolescentes da filha mais velha que dizia que ia estudar e trabalhar, pagando para alguém fazer a lida doméstica: para saber mandar, tem que saber fazer!

Era com orgulho que ela dizia a todos/as, especialmente, aos seus futuros genros, às épocas de namoro e noivado de cada uma de suas prendadas filhas, que elas sabiam cuidar da casa e cozinhar muito bem, do salgado ao doce, do feijão à sua gloriosa massa com molho branco aos mil e um queijos, do bolo simples para o café da tarde à sua torta de limão, com massa de verdade e não de bolachinha! Elas sabem fazer tudo! 

Ao fim e ao cabo, hoje em dia, uma tende à organização da casa e à outra, aos dotes culinários dessa mulher forte, que com uma filha de oito e outra de seis anos, retorna a sua cidade natal, sem dinheiro, separada de um marido, de quem aguentou bebida, violência e traição, para recomeçar e mostrar a uma sociedade ainda machista, em pleno final do século XX, que: mulher separada cria filhas decentes e de bem sim, elas vão estudar sim e não vão acabar grávidas não, eu tenho certeza, retrucava a minha mãe. Como eu ouvia isso…

Ora, será que ela era uma feminista?! Muito jovem, foi trabalhar no peixe, atividade pesada que mais tarde se manifestou em sua saúde debilitada, enfrentando os desmandes de um pai autoritário, que não permitia, por exemplo, que ela fumasse, porque isso não era coisa de mulher direita, inclusive, agredindo-a fisicamente. 

Depois de um tempo na indústria pesqueira, enquanto morava ainda na casa de seus pais, minha mãe muda-se para Porto Alegre, sozinha, por certo, libertando-se dos padrões patriarcais que tolheram sua infância e adolescência, marcadas pelo machismo desse pai conservador.

No ginásio, ganhou um concurso de melhor redação e o prêmio era uma espécie de intercâmbio, que lhe permitia passar um tempo numa cidade aqui do Rio Grande do Sul mesmo, na casa e escola de um menino que, por sua vez, passaria uns dias na casa e escola dela. 

Contudo, seu pai não a deixou ir, sabe-se lá o que poderia acontecer com uma menina solta por aí, afinal, ela não era dessas. Da mesma forma, o curso de enfermagem, sonho de profissão da minha mãe, o qual ela não pode sequer tentar, porque filha dele não ia ser amante dos médicos.

Já adulta, vivendo na capital, a profissional bem-sucedida, melhor vendedora da loja de roupas, para de trabalhar para se casar, ser mãe e dedicar-se à família, suas duas filhas e o marido, tornando-se uma exímia cozinheira e dona de casa

Foi nove anos de um casamento com um marido e um pai alcoólatra e violento, o qual, mesmo depois de parar de beber, continuava agressivo, a ponto de se contar nos dedos os momentos felizes vividos por essa família, cujo fim anunciava-se após uma infidelidade constatada, diante das duas crianças, em plena Rua da Praia, movimentado local no centro de Porto Alegre.

Colocar um marido violento para fora de casa, o qual negava-se a custear as despesas da sua família, restando a essa mulher, a mais forte que já conheci, ter de sustentar suas filhas fazendo lanches (bolo, cachorro-quente, negrinho e branquinho), de madrugada, para vender na escola das crianças, pela manhã, representa a maior luta feminina de todos os tempos, uma luta que constantemente se repete, em diversas famílias, em diversos locais do mundo. 

Ela encarou sozinha uma separação litigiosa, em 1989, em outra cidade, longe da sua família e sem o apoio da família do ex-marido, mesmo diante da traição, exceto financeiro, por algumas vezes, do padrasto dele.

Essa foi a mulher que me criou, que me tornou a mulher que sou hoje. Ela, que nunca foi feminista, que se orgulhava de sua excelência na lida da casa e da cozinha, na condição de mulher separada, retornou para Rio Grande, voltou a trabalhar, como empregada doméstica, comprou casa e seguiu a vida, também não baixou a cabeça para os desmandes de um marido que jamais a respeitou. 

Não aceitou discursos como: pensa bem, ele é teu marido, ou homem trai mesmo e mulher aceita, ou ainda: pensa nas tuas filhas e no exemplo que tu vais estar dando a elas (o meu preferido), libertando-se daqueles mesmos padrões patriarcais e conservadores da sua família e de uma sociedade, que agora quer a manter num casamento falido, (re)construindo a mulher lutadora que se tornou.

E não é que ela era feminista mesmo?! Toda mulher que luta contra a ideia de que mulher tem que aceitar tudo de um homem, seja a violência, seja o discurso de que seu lugar é em casa, é uma feminista. 

Esse é o exemplo que ela deu a suas filhas, mulheres e mães, não tão exímias cozinheiras e donas de casa como ela mesma gostaria, mas fortes e destemidas, que estudaram e não acabaram grávidas, pelo menos, não fora do casamento, como se pressupunha, enquanto meninas criadas por uma mulher separada, conforme os padrões sociais daquela época.

Minha mãe é sim, minha referência para tudo que sou, dentre tantas referências, por certo, para a pesquisadora que apresenta, neste texto, sua pesquisa de tese, sobre um grupo de mulheres que carregam muito fortemente essa exata ideia, do quanto a vida doméstica é natural à constituição da mulher, considerando os padrões de comportamento determinados por sua cultura a cada gênero.

Vejo na mulher indígena que busca um novo espaço, para além daquele doméstico, dentro das comunidades, dentro das aldeias, sob o olhar atento dos maridos, pais, lideranças, muitas vezes, um espaço de violência, doméstica ou não, como tem revelado este estudo; vejo em sua luta por visibilidade, por melhores condições de vida para sua família, para seus/suas filhos/as, ainda que em meio a preconceitos, seja de etnia ou de gênero, dentro da universidade ou fora dela.

Vejo nessa mulher um pouco da minha mãe, que não se dizia feminista, como muitas mulheres indígenas também não, mas que assim se tornam, para si mesmas, nesta luta constante, e para seus/suas filhos/as, irmãos/ãs, sobrinhos/as, que as tomam como referência de vida, outro dado desta pesquisa, assim como eu para com minha mãe, tomando-a como referência para além dos livros que tenho lido.

Autora: Karina da Silva Molina – @karinamolina_13
Revisão: @elasoqueriaescrever

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