Mulheres-mães protagonistas da própria história

CONTO | Maria do sítio

CONTO | Maria do sítio

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Maria nasceu em 1932 em um sítio no interior do Mato Grosso. Era a quinta, de sete irmãs, todas mulheres. Seus pais eram muito conhecidos na região, todos esperavam a chegada das sete meninas do Seu Bráulio nas festas das fazendas vizinhas. Os rapazes da região esperavam ansiosos pelo momento em que o carro de boi e os cavalos viriam pela estrada de terra trazendo as sete elegantes moças.

Elas eram realmente formosas, cada uma à sua maneira, além de muito bem educadas. Desde pequenas aprenderam a cuidar da terra, dos animais e da casa. As filhas mais velhas iam ajudando a cuidar das mais novas e assim a vida seguia naturalmente naquele interior.

Os pais de Maria faziam questão que ela e suas irmãs aprendessem as letras e os números. Assim, quando atingiam a idade para estudar, eles enviavam, uma de cada vez, para a casa de uma tia que morava na cidade e por lá ficavam, ao menos por dois anos, para frequentar a escola.

Maria não via a hora de chegar sua vez. Sua casa não tinha livros, ela só ouvia falar deles, mas mesmo assim imaginava como seria ler um. Ela sempre foi muito curiosa e sabia que tinha muita coisa no mundo ainda para conhecer além das fronteiras daquelas terras.

Quando finalmente completou 7 anos, que era a idade que elas iam estudar, uma de suas irmãs mais velhas foi picada por uma cobra e quase veio a falecer. A irmã teve que passar por muitos tratamentos para não perder a perna e Maria precisou permanecer em casa para ajudar a mãe. Ela, como boa filha que era, não reclamou e cumpria seus deveres com diligência.

Algum tempo depois, uma das irmãs mais novas foi estudar e Maria foi ficando para trás, mas a vontade de aprender era muita e ela sabia que não podia desistir. Assim, quando sua irmã voltou, Maria, que já estava com 11 anos, avisou aos pais: “vou para a cidade estudar”. Ela estava tão convicta que ninguém a tentou impedir, embora acho que não conseguiriam mesmo que tentassem.

Maria arrumou sua mala e foi feliz da vida para a casa da tia, sem saber que lá viveria mais como se fosse uma empregada doméstica do que uma sobrinha querida. Em troca da moradia, ela cumpria com todos os afazeres domésticos da casa, o que fazia sem se queixar.

Como ela era a mais velha da sua classe na escola, sentia ter mais dificuldade para aprender do que os mais novos, e por isso se dedicava o dobro do que as outras crianças. Sua rotina se baseava em ir para a escola, voltar para casa, limpar, lavar, esfregar, passar, cozinhar e, de noite, quando todos já estavam dormindo, finalmente conseguia tirar um tempo para estudar. Maria usava uma vela para ler quando tudo já estava escuro, o que fez com que ela queimasse parte do olho e prejudicasse sua visão. Mas isso tampouco a desanimou.

Quando chegou a hora de voltar para o sítio, ela o fez e lá permaneceu durante alguns anos da adolescência. Maria amava aquela terra e, principalmente, amava estar com sua família. Mas sua alma sabia que aquela vida já não a pertencia mais e nem poderia, não depois dela ter tido um gostinho de que havia muito mais no mundo. Ela lia repetidamente os livros que trouxera da cidade e isso só lhe dava mais vontade de voltar para continuar adquirindo cada vez mais conhecimento.

Finalmente, Maria tomou coragem para conversar com seus pais e eles entenderam que não poderiam a manter ali; ela merecia a chance de conquistar o mundo. Assim, voltou para a cidade e dessa vez conseguiu se mudar para a casa de outros parentes que a tratavam melhor.

Ela estudou e se formou professora, que era o máximo que uma mulher poderia ter de ambição naquela época, pelo menos no interior do Mato Grosso. Lecionou por um ou dois anos, mas aquilo ainda não era o suficiente para ela. Ela queria alçar voos maiores. Seus sonhos eram mais altos e ela não podia desistir ainda.

Um dia, ficou sabendo de uns parentes que moravam no Rio de Janeiro. Mesmo naquela época, lá já era uma cidade grande, com universidades e tudo mais. Ora, era a capital do Brasil. Maria sentiu que era para lá que ela tinha que ir. E foi, sem olhar para trás.

Morou por pouco tempo de favor, mas logo conseguiu dois empregos e pôde alugar um quarto em um pensionato. Maria trabalhava com computação, em uma época que um computador ocupava um andar inteiro de um prédio e era preciso usar protetores no ouvido por causa do barulho.

Claro que isso ainda não a satisfez. Maria, que tinha sede e fome por conhecimento, colocou na cabeça que seria advogada e, como nada no mundo a parava, ela de fato entrou na faculdade de Direito. Se formou. Era enfim Bacharel de Direito. Uma das únicas três mulheres de uma turma de mais de sessenta homens.

Maria morava no Rio de Janeiro quando Getúlio Vargas se suicidou. Ela conta que estava andando no bonde quando a notícia se espalhou pelo Rio de Janeiro inteiro. Foi um alvoroço para todos os lados e os militares ameaçavam atirar nas pernas de quem descesse do bonde. Sim, ela presenciou fatos históricos, daqueles que a gente lê nos livros da escola. Mas a história mais impressionante que aquela menina que saiu de um sítio do interior do Mato Grosso presenciou foi sua própria vida.

Ainda durante a graduação, Maria conheceu um rapaz, Jorge. Ela gostava dele, mas faltava algo que ela não sabia explicar o que era. Esse “algo”, todavia, só faltava para ela, pois ele estava completamente apaixonado. Um dia, logo após se formarem, Maria viajou para sua terra natal para visitar sua família e o rapaz, sem lhe avisar, viajou para lá poucos dias depois.

Maria estava andando a cavalo com algumas de suas irmãs, quando um peão a chamou: “Maria! Maria! Vem! Seu pai está mandando que vá para casa o mais rápido possível. Seu noivo lhe aguarda.”. Noivo? Não tenho noivo, pensou Maria, mas obedeceu e voltou aos trotes com o cavalo. Quando entrou, viu seu pai, feliz, brindando com um conhaque com seu namorado. “O que está acontecendo?”, perguntou ela sem entender nada. 

Jorge havia pedido sua mão em casamento para seu pai e este, achando que era o que Maria desejava, aceitou de bom grado. Todos estavam felizes. As irmãs e a mãe de Maria a abraçavam e seu pai gargalhava com seu novo genro. Maria não queria casar, mas não teve coragem de dizer “não”. Ela era uma revolucionária, de muitas maneiras, mas no fundo ela nunca deixou de ser também aquela menina obediente que veio de um sítio do interior do Mato Grosso.

Autora: Raíssa Brundo – @leiturasdaraissa.
Texto revisado por Luiza Gandini.

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