Um jornalista critica a maternidade de uma blogueira, soltando a máxima “mãe é quem cria”. A internet tem opiniões divididas. Umas endossam a fala dele, outras criticam. No meio disso tudo, qual seria a minha posição?
Eis que não vou dar algo de imediato. Precisamos aprender que certas “respostas” não são fast-foods que chegam à sua tela de celular. Elas precisam ser explicadas nas várias camadas que lhe competem. E quais seriam elas? Vou te falar!
Para contextualizar melhor o episódio que será analisado, vou descrever brevemente o que aconteceu. Uma blogueira/influenciadora com milhões de seguidores e que abertamente expõe sua rotina, Virgínia Fonseca, tem duas filhas. Um dia, a mais velha precisou tomar vacina e, junto com a mãe e a babá, se mostrou relutante. Quando percebeu o que iria acontecer, se jogou nos braços da babá, mesmo com a mãe a chamando para seu colo. O vídeo dessa situação saiu em chamadas de instagram de fofocas e o jornalista global Evaristo Costa decidiu fazer o seguinte comentário: “Já ouviram falar: ‘Mãe é quem cria?’ “.
Essa opinião viralizou e, como expliquei anteriormente, houveram pessoas apontando erros nos dois lados. Mães revoltadas com a fala do Evaristo, descrevendo suas rotinas pesadas e cansativas que demandam uma babá por muito tempo na companhia dos filhos e, outros internautas, apontando como a afeição da criança à cuidadora seria um sinal da ausência da mãe, que foca mais no trabalho, mesmo sem depender financeiramente dele. Observando esse caldeirão de ideias, notei que seria uma ótima oportunidade para trazer os “dez pressupostos da maternidade patriarcal” de Andrea O’Reilly.
O’Reilly é uma pesquisadora e escritora canadense de temáticas feministas que instituiu o termo “estudos maternos” para “apresentar e demarcar o conhecimento desenvolvido sobre o tema como um campo legítimo e autônomo, fundamentado em tradições teóricas sobre maternidade propostas por Patricia Hill Collins, Adrienne Rich e Sara Ruddick”, como afirma o artigo “Refletindo maternidades e redes sociais digitais a partir do feminismo matricêntrico” de Milena Freire de Oliveira-Cruz e Kalliandra Quevedo Conrad.
A autora escancara uma lacuna no feminismo sobre a temática maternidade, dado que certas opressões só acontecem nas sujeitas a partir desse lugar identitário. Ela trabalha a perspectiva de que os estudos feministas precisam analisar as nuances experienciais, ideológicas e subjetivas da maternidade e, para isso, propõe um feminismo matricêntrico. O local de mãe seria sustentado pela cultura patriarcal, que homogeneiza a experiência materna, entregando o viés de validade sobre a “boa mãe”. Em vista de refletir os ditames desse discurso normativo, O’Reilly sistematizou os “dez pressupostos da maternidade patriarcal”.
Como afirmado na abertura do texto, eu quero aproveitar a oportunidade para olhar as camadas que podem ser apontadas nessa situação da Virgínia, e explicar os pressupostos da O’Reilly. Observe as conexões:
Essencialização e privatização + Virgínia: a blogueira, logo após a repercussão do vídeo, trouxe um desabafo sobre seus conflitos internos na maternidade, especialmente a culpa que sente por gostar de trabalhar e se esforçar para ser uma boa mãe. Isso reflete os conceitos de essencialização, que posiciona a maternidade como fundamento da identidade feminina, e privatização, que coloca o lugar da mãe apenas na esfera doméstica. Por isso, Virgínia carrega tamanho peso na condução da sua maternidade. Duvidar da sua capacidade de maternar, em especial pelo conflito entre trabalho e vida doméstica, é julgar sua capacidade em amar a filha.
Normalização e despolitização + babá: a criança parece demonstrar mais apego a babá e alguns internautas apontaram que isso acontece por ela dar mais atenção e cuidado a criança do que a própria mãe. No Brasil, existe uma clara cultura de opressão às profissões de cuidado (predominante nos corpos femininos pretos), com terceirização do afeto e vínculos empregatícios indignos, pautados pela aparente intimidade. Podemos nomear a normalização, um pressuposto que dita a família nuclear e faz com que a babá seja “família” apenas no discurso. Na prática, ela será apenas uma engrenagem serviçal para o funcionamento do “normal”. Quanto à despolitização, implica que os cuidados maternos não teriam viés político, porém, a babá negra e a mãe branca é um retrato claro de conjunturas políticas, como o racismo estrutural.
Especialização e intensificação + jornalista: a liberdade do Evaristo Costa em comentar sobre a conduta materna de uma desconhecida vem do julgamento socialmente institucionalizado sobre as práticas maternas. A especialização dita que as mães precisam aprender como fazer o certo, ainda que isso venha de um estranho qualquer, empenhado em ensinar a maternidade para uma mulher. Quanto a intensificação, ela prediz que a mãe será sempre bombardeada de informações sobre o que deve ou não fazer na sua prática materna, adotando métodos cada vez mais cansativos e trabalhosos.
Biologização e Individualização + comentário: a expressão opressora “mãe é quem cria” individualiza o cuidado dos filhos a figura da mulher, especialmente aquele que pariu a criança. Por isso, ela é um reflexo do pressuposto da biologização, que coloca como autêntica e “real” a mãe que carrega os laços sanguíneos. A individualização dita que a maternidade é um cargo centrado no feminino e de capacidade individual.
Naturalização e Idealização + pai: a não-visibilidade do pai na situação, nos reclames dos comentários e nas chamadas das páginas de fofoca revela como o aspecto da naturalização prevalece, no sentido de enxergarem o cuidado da criança apenas como dotes “naturais” da capacidade da mulher. Também escancara a idealização, ao reforçar expectativas irreais para a mãe (trabalhe, mas continue maternando), enquanto o pai pode lidar com suas experiências sem essa cobrança.
Se for preciso, leia mais algumas vezes as conexões entre os pressupostos e as nuances que podem ser observadas com essa polêmica. Esse tipo de exercício pode nos ajudar a elencar melhores reflexões sobre as dinâmicas da maternidade na estrutura patriarcal e como, muitas vezes, uma situação semelhante a essa não vai demandar uma resposta rápida e imediata.
FONTES
OLIVEIRA-CRUZ, Milena Freire de; CONRAD, Kalliandra Quevedo. Refletindo maternidades e redes sociais digitais a partir do feminismo matricêntrico. Revista Estudos Feministas, v. 30, 2022.
O’REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice Toronto: Demeter Press, 2016.