Mulheres-mães protagonistas da própria história

Cinesia da vida

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A palavra isolamento tinha outro sentido, ou talvez, agora fizesse verdadeiro sentido. A improdutividade a atingia de uma maneira brusca. O anoitecer já não era o suficiente para fazê-la criar. Organizar seus pensamentos e rascunhá-los no papel já não era mais tão fácil. 

O que antes era seu maior refúgio, em meio a esse exílio, tornou-se seu maior desafio. Os dias passavam rapidamente e as noites pareciam intermináveis. Papéis coloridos, canetas com escrita macia e suave, incenso com aroma de alecrim que prometia auxílio na concentração e clareza da mente, cadeira aconchegante, apoio de pés ergonômicos com pontos magnéticos para melhor circulação sanguínea, enquanto ficava horas em mais uma tentativa frustrada de produzir. 

Seu companheiro fiel sobre a mesa, café forte e sem açúcar. Ao longo da noite se perdia, entre elaborações de frases desconexas e sondagens sobre o que estava acontecendo no mundo virtual. Ela ainda não sabia, não tinha consciência de como isolar-se de forma imposta estava totalmente relacionado com a fuga de todas as suas inspirações. 

A solitude nunca foi um problema, muito pelo contrário, sempre foi o abrigo dela. O isolamento necessário durou mais tempo do que ela conseguiria imaginar. Seus medos, crenças e anseios a fizeram intensificar tudo aquilo que já era demasiadamente insano.

Para um momento que exigia muitos cuidados, ela se desalinhou daquilo e daqueles que poderiam manter a calmaria e o equilíbrio. Estavam todos atentos aos novos acontecimentos, mas o afastamento, a ausência dos outros em seus dias a deixaram presa e sozinha em seus próprios e, talvez, não verdadeiros pensamentos.

Seus dias eram cheios, entre aulas e trabalho, ela colhia flores no caminho para decorar sua mesa no escritório, comprava doces da senhora vendedora após o almoço, fazia café fresquinho para os colegas. Ao entardecer, quando chegava em casa, corria procurar seu gato, em busca de carinho. Logo, se organizava para escrever, qualquer caneta e papel em branco eram suficientes para as inspirações de seu dia corrido, a madrugada era pequena. Mas, tudo mudou.

O ônibus lotado, as faces cansadas, as histórias engraçadas contadas dentro da condução, a diversidade, o trânsito, as imagens das casas durante todo percurso, o relógio contra o tempo, tudo era estímulo para sua mente criativa. Os jardins ornados da universidade, as muitas árvores centenárias, os pássaros cantarolando, a multidão em andamento, a vida em movimento. 

Conforme o desenrolar do dia, toda essa cinesia fazia parte do processo que a levava a escrever com propriedade. Isolar-se de forma forçosa a fez perder suas influências. Seu companheiro fiel já não é mais tão saboroso, o gosto amargo não está só no seu café. 

Entre muitas das frases incoerentes, ela se percebe em privação, nota que está com abstinência de presença, carência de vida. Em um impulso ela decide que precisa de um café saboreável, sai determinada a encontrar algo que satisfaça seus desejos. 

Movida pelo apetite de viver novamente, ela se acomoda em um pequeno café bar, trêmula pede um cappuccino com canela, perto de uma grandiosa janela ela pode observar a vida em curso novamente. Pessoas indo e voltando, cães e seus donos, ciclistas, entregadores, carros… mesmo com o céu encoberto por nuvens que anunciavam chuva, ela apreciava tudo em movimento.

O café serviu como um delicioso abraço quente, a delicadeza e atenção da atendente ecoaram como música suave e acalentadora. Era simples, era assustador, era um recomeço, eram suas inspirações retornando, mais do que isso, para ela era a certeza da vida continuando.

 A chuva chega rapidamente, enquanto as pessoas tentam fugir ou se abrigar do aguaceiro, ela decide que é a hora de voltar para casa. Em meio à chuvarada, ela sai reflexiva, encharcada, degustando cada pequeno acontecimento à sua volta. Sentindo toda aquela água tomar seu corpo, desfrutando como quando era criança.

As ideias voltaram a fluir, antes mesmo que ela percebesse já estava sentada rabiscando em seus papéis, tinha muita atividade dentro dela, após meses de isolamento em suas próprias alucinações.


Texto: Tatiana de Barros – Instagram: @tatyabli.


Texto revisado por Daiane Martins.

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