Mulheres-mães protagonistas da própria história

A geração que “não morreu”

A geração que “não morreu”

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Por Regina Miranda | @reginaliber2020

“Ah! Mas eu sempre apanhei quando criança, se fizesse arte, e não morri”.

É tanta coisa que se pode concluir sobre quem costuma dizer isso que nem sei por onde começar. Este é um exercício do que chamamos na academia de Análise do discurso, um ramo da ciência linguística que busca compreender como questões sociais e subjetivas se revelam nas escolhas que fazemos dos termos que usamos para dizer algo.

Por exemplo, posso dizer que o copo está meio cheio ou meio vazio e a escolha que faço para descrever um copo que tem metade de sua capacidade preenchida com algum líquido (veja que essa última forma de descrever também constitui uma escolha de termos que parte de outra perspectiva, ainda diferente das duas primeiras), revela qual é minha intenção (ou estado de espírito) ao descrever tal objeto de tal maneira. Na terceira forma de descrição (com termos mais eruditos e de uma perspectiva científica), por exemplo, há uma intenção de neutralidade, de não se assumir nem como otimista (caso do copo meio cheio) nem como pessimista (copo meio vazio), já que estou tentando explicar um conceito linguístico.

Pois bem, seja com o copo meio cheio, meio vazio, totalmente cheio ou vazio por completo, é interessante um gole de água antes de partir para a questão da sentença de abertura desse miniensaio. Um gole de água e muita calma nessa hora.

Vou começar pela escolha dos termos principais, um a um. Por exemplo “apanhei”. Poderíamos substituir essa palavra por “fui abusado”, por exemplo. Ou por “sofri violência”. Quando a pessoa escolhe usar esse termo que, na educação tradicional, é visto como uma forma legítima de punição com o intuito de educar, já temos uma escolha feita. Ao selecionar esse termo, a pessoa (emissor da mensagem, como chamamos nos estudos linguísticos), já está escolhendo afirmar que a violência que se perpetrou contra si na infância não era violência, mas um recurso punitivo de educação. São pessoas que continuam aceitando que o behaviorismo, com ênfase no reforço negativo, funciona com seres humanos tão bem como funciona com animais “irracionais” (note o que essas “aspas” dizem sobre mim: que concordo com as correntes que questionam essa definição de animal racional ou irracional para nos diferenciar dos outros animais).

O segundo ponto que noto é o “fizesse arte”. Vamos pensar juntos? O que é fazer arte? O que é uma criança arteira? Quais eram as “artes” que fazíamos e que resultavam em uma surra? Se tratava de algum crime? Roubo talvez!? Agressão? Não, não se tratava de nenhum crime. Normalmente, essa arte era aquilo que a curiosidade, inerente à infância, leva as crianças a fazerem.

Essa curiosidade, aliada ao cérebro ainda em desenvolvimento, faz com que crianças olhem e mexam em objetos que ofereçam risco a elas ou que sejam frágeis; ou que se esgueirem até locais com risco de se ferir; ou subam em locais altos demais para seus corpinhos pequenos e frágeis. Essa “arteirice” é, portanto, o ser criança em si. Em resumo, salvo raras exceções, crianças apanhavam (e ainda apanham) por serem exatamente o que são: crianças.

Estudos recentes (e alguns até já muito antigos) apontam que métodos de reforço negativo, e mesmo de reforço positivo, não educam. No máximo, condicionam o ser humano a aceitar certas regras. Mas essa aceitação se dá por meio do medo e, certamente, sem reflexão. Assim, é possível concluir que o emissor que utiliza essa expressão internalizou que regras e leis devem ser seguidas sem reflexão, sem questionamento e, também, que devem ser seguidas com o fim de evitar uma punição.

Ou seja, são pessoas que não roubam porque “isso dá cadeia”, mas, não necessariamente, por entenderem o problema de relacionamento social que enseja alguém tomar para si o que não é seu. Eu sempre me pergunto o que essas pessoas fazem quando têm certeza da impunidade.

E, finalmente, o “não morri”. Acho que esse é o mais importante de todos os aspectos e o mais preocupante. Sabemos que, infelizmente, não são tão raros quanto gostaríamos os casos de crianças que vão a óbito em decorrência de métodos de punição física usados como recurso educacional. Não quero citar nomes, porque torna ainda mais doloroso, de uma dor pungente, adicionar nomes e rostos aos números.

Mas registros da Unicef, por exemplo, falam de uma média de sete mil por ano.

Então, a primeira consideração sobre a escolha dessa expressão reside no fato de que precisa vir de alguém que desconsidera totalmente que ainda que ela tenha sobrevivido a uma educação pela palmada, muitas outras crianças não tiveram essa sorte. Quando aceitamos uma sociedade em que castigos físicos são uma regra para educação de crianças, estamos assumindo socialmente o risco desses óbitos. Então, alguém aceitar que porque ela não morreu em decorrência desse modelo de educação, ele está correto ou, no mínimo, é aceitável, isso me diz dessa pessoa que ela tem uma capacidade reduzida de empatia, de olhar para além de seu mundo, de sua própria história de vida e entender que, quando se diz que não é adequada uma educação pela palmada porque traz riscos de vida e de integridade física e emocional, não estamos falando apenas dela, estamos falando de milhares de crianças.

Além disso, me diz dessa pessoa que ela parece considerar que sobreviver já é suficiente, portanto, qualquer coisa que não mate é aceitável. Pergunto-me se essa pessoa, ao ser abordada por um assaltante ou ladrão de carros armado, escapando com vida iria achar que “tudo bem” porque, afinal, não morreu. Se essa pessoa iria concordar em ser explorada, por exemplo, em trabalho escravo, desde que sobrevivesse a isso. Qual é a lógica por trás de uma afirmação dessas?

E, assim, chego no título. Somos uma geração (nós, que fomos educados pela palmada) que apenas sobreviveu? Somos uma geração que “não morreu”. Uma geração que foi ensinada a não questionar uma regra e desobedecê-la significa sofrer algum tipo de violência física e/ou psicológica (como ficar trancado no quarto, por exemplo). Uma geração que associa deveres sociais à punição que resulta de não os cumprir em vez de associar esses deveres ao compromisso que temos com os outros e com a sociedade em geral. Compromisso de engrossar um caldo de bem-viver, de contribuir para uma sociedade mais justa e pacífica.

Se minha motivação para fazer algo ou não, para escolher entre o que é o certo e o que é inadequado socialmente é, apenas, considerar a punição que pode vir daquilo, quando vou escolher o que é certo? Será que farei isso simplesmente ao reconhecer o que é o certo ou apenas quando fazer o que é errado, cometer um crime, uma violência, for resultar em punição? Se o que me motiva a manter um comportamento social adequado se concentra na punição ou impunidade, o que irá me impedir de cometer um crime quando estiver certa da impunidade? Nada.

Por outro lado, somos uma geração que se conforma em apenas sobreviver. E dentro dessa satisfação com a sobrevivência aceitamos em nossa rotina diária o sistema punitivista sobre o qual essa sociedade se sustenta. Estou falando de um sistema carcerário cruel, mas também estou falando de uma lógica de cobrança por metas, nas empresas, que adoece. Parece que só se concorda que a pressão foi demasiada quando o cidadão comete suicídio. Mas, enquanto sobrevivemos, mesmo que seja à base de tarja preta, então está tudo bem.

Somos uma geração que “não morreu”, que olha para a vida dessa forma reducionista? O que não mata engorda!? Uma geração que aceita punições injustas, mesmo as físicas, com um único critério: se não matou, tudo bem? Não matou, mas gerou um cidadão que entende que pode cometer crimes desde que tenha certeza da impunidade e, por conta disso, comete abuso sexual de crianças por saber que elas não terão condições de denunciar. Um cidadão que comete violência doméstica na certeza da impunidade, que comete fraudes, corrupção, por saber que, tendo “as costas quentes”, tendo as forças policiais sob sua custódia, sairá impune. Cidadãos, por outro lado, que aceitam injustiças e violências diárias porque estão sobrevivendo e isso basta.

Agora, a pergunta mais importante é: queremos criar mais uma geração que “não morreu”? Queremos repetir ciclos de violência e perpetuar gerações e mais gerações de pessoas que, apenas, sobrevivem!?

Revisão: Stefânia Acioli – @tevejomae 

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