A Culpa do Privilégio

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Há 23 anos o mercado de trabalho e eu andávamos de mãos dadas, muito bem relacionados, inclusive. Nos últimos 5, a vontade de soltar a mão dele me consumia, pois me descobri grávida e depois, nasci como mãe.

Nos altos dos meus 39 anos, maturados em experiências profissionais incríveis, chega a maternidade para me colocar em um looping infinito de emoções, descobertas, pânico, traumas, neuroses e reinvenção.

Gravidez tranquila em saúde e movimentada em trabalho. Licença maternidade às vésperas do parto. Chegada da mulher que eu deveria criar. Limbo maternal. Apagão total para qualquer possibilidade de pensar em estratégias de marketing, se não fossem aquelas para convencer a pequena mulher de que ela fez a escolha certa de mãe.

O trabalho que me exigia pensamento estratégico e acelerado, agora me tinha aos pedaços porque minha agilidade mental estava também em estoque de fraldas, introdução alimentar, covid-19, isolamento social de bebê e todos os medos que uma mãe de primeira viagem na pandemia foi capaz de ter e de inventar.

A adaptação materna e profissional chegou. Normalizando perrengues emocionais, saídas de urgência, faltas inesperadas, campanhas de sucesso, metas batidas. Ufa… Deu certo!

Só que não!

À medida que a infância se estabelece e você sente que ela é um meteoro, a culpa dá aquele abraço de urso e fica suspirando pertinho do teu ouvido: “cadê as memórias onde tu, mãe, deverias estar?”

Um relógio silenciosamente ensurdecedor faz tic-tac dentro do teu coração a cada hora de trabalho que passa aqui, enquanto a infância está acontecendo lá. É dilacerante. Uma sopa requentada de sentimentos que a vida te obriga a jantar todo dia.

Enjoa, dá náuseas, adoece. A pseudo cura vem dos olhinhos brilhantes que te esperam no portão com a canção mais bonita do universo, que ressoa com um longo “Mamãe chegou!”.

Não dá. A escolha parece simples. Mas os 23 anos e todas as metas alcançadas com sucesso revisitam um coração que já foi somente estratégias.

É hora de dar morada à culpa do privilégio. Sim! O privilégio de poder escolher estar na infância da pessoa mais especial e enchê-la de cores pesa. Uma carga que me interroga o tempo inteiro, questionando se eu posso fazer isso comigo e com minha carreira tão arrumadinha!

Bagunça emocional, loucura quase.

Escolher sair de cena, deixar o palco, é um privilégio que poucas podem fazer. E isto também machuca. Poder escolher a infância de alguém ao invés de seguir batendo ponto e metas.

Escolher maternar é estrategicamente a ação de marketing mais difícil de executar que terei, afinal as metas eu não sei estabelecer. Porque vou iniciar a carreira agora, mesmo que eu a tenha nos braços há 4 anos. Um maternar novo, sem hora para sair e chegar, cheio de culpa, de atropelos e de amor.

Um currículo que valida meu título maior: o de mãe. Privilegiada, culpada, mas acima de tudo, mãe.

Por Rúbia Corrêa – @rubiasantarem

Revisão: Stefânia Acioli – @tevejomae

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