O brincar que liberta
Por: Juliana Monteiro – @escritorajulianamonteiro
“Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo…”
Carlos Drummond de Andrade
Imagine a situação:
Trânsito intenso e você dirigindo mais um carro no meio de tantos; sua cabeça se divide em mil pensamentos que giram entre o preparo da janta de hoje até a paz mundial. Enfim, um turbilhão de coisas que precisam ser feitas até o final do dia estão passando pela sua mente.
No banco de trás, aquele serzinho de olhos curiosos que exploram lá fora e o corpo inquieto tenta se ajeitar na cadeirinha com o cinto de segurança ao seu redor. Ficar parado no trânsito não é mole para adulto, imagine então para a inquietude de uma criança?
— Mãe, vamos brincar de criatividade?
Não escuto de primeira, pois os mil pensamentos aleatórios estão dominando quase todo o meu ser naquele momento.
— Mãe, vamos brincar de criatividade?
A rabugice de adulto toma forma e me compele a dizer:
— Filha, não quer escutar uma música? Quer brincar no tablet?
Qualquer coisa para que eu possa continuar absorta em meus pensamentos adultíssimos.
— Não mãe, quero brincar de criatividade!
Ainda presa à minha rabugice, pergunto quase sem querer:
— E como é que se brinca de criatividade, Manu?
Ela, na sabedoria dos seus seis aninhos, me responde:
— É muito fácil, eu falo uma palavra e você inventa uma história maluca que vem na sua cabeça, depois você me fala uma palavra e eu invento outra história maluca.
E entrei na onda de brincar de criatividade; inventamos mil histórias da nossa cabeça e aquilo virou uma rotina a partir daquele dia.
Brincar de criatividade para nós duas era inventar histórias malucas para evitar o tédio do trânsito indo e voltando da escola todos os dias.
Aquela brincadeira durou por muito tempo e ansiávamos pelo trânsito para que ela acontecesse. Manu ao entrar no carro já dizia:
— Hora de brincar de história maluca!
Hoje, olhando em retrospectiva, penso nessa situação como um resgate; estava me afundando nas preocupações e problemas que já nem me lembro mais quais eram e minha filha me resgatou com a inocência e pureza que só as crianças têm.
Guardo com muito carinho as lembranças de nossas idas ao colégio com histórias malucas cheias de criatividade; foi nestes momentos que a Cadeira Falante, a Lua Irritada e tantas outras histórias nasceram.
Fico imaginando se ela não tivesse insistido em brincar de criatividade, se tivesse desviado toda aquela força da natureza para uma tela qualquer, quanta riqueza e conexão de mãe e filha teríamos perdido de viver.
Hoje a Manu já tem 15 anos e tenho certeza que ela também carrega memórias fortes de nossas histórias malucas brincando de criatividade dentro do carro. Estávamos indo para a escola, mas também viajávamos para mil mundos fantásticos ao mesmo tempo.
Uma grande lição que recebi da minha filha foi que ao dar tempo para ela, ela me libertou de todas as cadeias imaginárias que eu mesma estava me aprisionando.
Como diz Augusto Cury, há um mundo a ser descoberto dentro de cada criança e de cada jovem. Só não consegue descobri-lo quem está encarcerado dentro do seu próprio mundo.
A Manu me resgatou do meu mundo. E você? Já se deixou ser resgatada(o) por uma criança?
Revisado por: Luiza Gandini – @lougandini