Eu, mãe, vivendo o luto

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Aviso de gatilho: luto

Por Shirlene Oliveira Heezen 

Nil, meu menino multicultural, meu menino do mundo, que em poucos e intensos anos respirou ares de diversos países e desde meu ventre ouviu Mozart, Elvis, João Gilberto, Paulinho da Viola, André Rieu, ouviu o meu silêncio e as batidas do meu coração e também do coração do seu irmão gêmeo.

Juntos dançamos todos os ritmos que tocava no rádio e rimos os risos mais felizes como se o amanhã não existisse, que a dor jamais nos afetaria e nos abraçamos cada vez que os nossos olhos se cruzavam e a necessidade de aconchego e a vontade de sentir a pele e o cheiro do outro era maior que tudo e mais importante que tudo.

Não era ele e eu, éramos nós! Com seu tênis All-star preto e sua blusa rock-n-roll pulamos ao som de Rolling Stones, sambamos com Martinho da Vila, e éramos os dançarinos perfeitos das músicas de Michael Bublé e das cantigas de roda portuguesa. Juntos éramos os baixinhos da Xuxa, éramos a atração principal no palco da diversão do Alex, que atentamente e com olhos cheios de ternura, tudo observava e tudo memorizava.

Logo na primeira vez que ele sugou meu seio para se alimentar eu o chamei de piranha, pois sugava meu seio faminto, cheio de vida, com tanta força e vitalidade que toda vez que ele chorava, eu dizia, a minha piranha está com fome, e no meu seio, a piranha adormecia e eu ficava admirando sua beleza única, olhos pequenos como os meus, cabelos escuros e brilhantes como de indígenas, pele clara, macia e com cheirinho de amor, o amor é tão mágico que em cada filho o cheiro é diferente, mas o amor é o mesmo.

Inesperadamente minha barriga começou a crescer, e lá dentro um novo coração já batia, foi aí que pude ver diante dos meus olhos que o amor não se divide, amor se soma, se multiplica toda vez que o partilhamos. Um irmãozinho chegaria para alegrar ainda mais nossas vidas, meus seios que eram fonte de energia e aconchego para os gêmeos passariam a ser exclusividade para o novo serzinho, e a mamadeira passou a ser a vítima do meu menino piranha que já tinha dentes afiados, o leite ele passou a sugar só da mamadeira, mas o aconchego, o conforto, a segurança ele encontrava coladinho no meu corpo, pele com pele até o último dia que ele respirou o mesmo ar que eu respirava.

A cozinha era seu parque de diversão, enquanto eu preparava a polenta com molho de carne, ele tirava todas as panelas do armário e com uma colher fazia o som que embalava nossas dancinhas antes do jantar.

Não, eu não estava preparada para me despedir de um pedaço de mim, nenhuma mãe está preparada para dar o último beijo no seu filho, beijo gelado, sem respiração, sem vida. Eu dei este beijo, e o sabor dele eu sinto toda vez que a saudade toma conta de mim. Eu sou a saudade.

Calça de veludo para que ele não sentisse frio, camiseta nova, comprada especialmente para ele usar quando saísse do hospital, a blusa rock que ele tanto amava, e meias vermelhas com listras coloridas, escolhidas pensando em mim, pois com sua partida eu ficaria perdida, cairia no chão, e ali ficaria sem ter forças para levantar, e se eu também morresse, mesmo sem forças para levantar e caminhar diante de tantos outros mortos, eu poderia de longe avistar pezinhos vermelhos com listras coloridas.

Eu não morri. Meu menino vive em mim. Suas meias vermelhas com listras coloridas se tornaram a minha bandeira. A bandeira que dá a largada para viver o aqui e o agora. A memória das nossas danças, dos nossos abraços, da nossa alegria, da nossa curta e intensa vida juntos, é simbolizada pelo girassol, meu menino girassol, gira o mundo, porque por onde eu passo, eu deixo uma semente do meu menino, eu falo da nossa vida juntos, e se eu falo da nossa vida, eu falo do amor, eu falo da coragem e da fragilidade que faz da nossa existência uma aventura que vale muito a pena ser vivida.

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