Mulheres-mães protagonistas da própria história

Tempo lunar

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De repente seu corpo não lhe pertence. O tempo das coisas passa ao plano secundário e os prazos fazem cócegas à ansiedade. Aquele agir relapso perante a sua existência causa angustia e aversão. 

A dieta de café, cigarro e longas horas de jejum só causam náusea e as mudanças se colocam como imposição. É muita violência. Uma invasão! Nem seu corpo, metabolismo ou emoções lhe pertencem. E nessa hora não tem palavra doce que o mundo possa lhe oferecer. A sensação de desamparo é vil.

É solitário em seus próprios sentimentos, incompatíveis àquele momento, cujo senso comum é completamente alienado. “Magia”, “beleza”, “estado de Graça” lhe soa como uma terrível piada, feita por quem nunca sentiu ou sentirá o peso dessa jornada. Pois bem, daqui de onde falo, alma rebelde de nascença, só me restou a submissão à mim mesma. Eis quem sou agora: tempo lunar em descoberta. 

A dieta de um colo em formação, pequenas doses a cada três horas, sonos impróprios no meio da tarde, produtividade no horário do inferno até o amanhecer. Meu companheiro se retorce no limbo de não entender, então eu verbalizo. Ele responde com afinco do jeito que consegue: troca as marcas de desodorante para algo mais tênue, cuida da minha dieta como um técnico de futebol e cede aos meus caprichos infantis. 

O gato me parece solidário. Vigia meu sono criminoso durante as tardes, esquenta meu ventre, e faz as vias de amuleto protetor nas madrugadas insones, quando os medos infantis saltam aos olhos. Só me resta ceder ao tempo lunar. E talvez isso me soe como resposta às minhas culpas. 

Será que serei capaz de amar sem obstante?! Será que não farei resistência à vida que demandará a minha vida de forma incondicional? Serei eu capaz de abrir mão do ego pra ceder lugar a um novo ethos, compatível com essa forma de amar?! Eu tenho medo.

Nesse momento, quero voltar ao meu próprio útero, quando só me comprazía à divisão celular. Mas não há tempo para realidades quânticas. Nem para lamentar às mulheres que viverão esta, e outras culpas sem a possibilidade de suas próprias mudanças. O tempo das coisas é voraz.

Quando não se tem privilégios e acessos, a gestação pode ser apenas um prazer condescendente. Amálgama entre os dentes na rotina da trabalhadora. Que mal sucumbe ao tempo de velar o corpo que tão pouco lhe pertence e que agora dista mais ainda de seu controle. 

Eu senti o peso dessa violência uma vez, aos 16. E lidei com ela no esquecimento. Agora, como fruta madura, caio na terra pra desfrute da semente. Ao meu desfrute: apenas o prazer de contemplar a experiência. 


Autora: Sou Luciana Brauna, tenho 32 anos, sou mulher preta, de São José dos Campos SP. Professora de Sociologia e Filosofia na rede estadual de ensino, sou poeta escrevivente com poesia publicada na antologia “Mulheres Letras Pretas” Editora Litere-se, 2020. E em maio de 2021 está previsto lançamento do meu segundo livro “Se me deixassem falar”.

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