Mulheres-mães protagonistas da própria história

Recuperação

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Por: Mary Grace

Outro dia a Cambaxirra se aproximou de mim. Estava jururu, algo que não combinava com ela. Suas mãozinhas seguravam um papel. Era seu boletim. Vi o número em vermelho me assustei.

─ Como assim 5,0 em história?!

Ela sabia que não havia desculpa para aquele desempenho. Mesmo assim, a danada colocou a culpa toda na vinda da Corte Portuguesa.

─ Absurdo, mãe, mais de 9.000 portugueses vieram para cá. Muita gente! Bagunçaram tudo por aqui!…

A bichinha é boa em história. Mesmo assim levou bomba na prova. Inacreditável. Enfim… Antes que ela me confundisse, cortei de forma ríspida sua desculpa esfarrapada (divertida, diga-se de passagem), e emendei aquele velho discurso matriarcal de que “a única responsabilidade que ela tem na vida é estudar, e que meu dinheiro não é capim, blá, blá, blá”.

Ela acrescentou que, por conta da nota, teria ficado em recuperação. Não entendi muito bem. Afinal de contas, na minha época, a recuperação acontecia no final do ano letivo. Mas, como meu foco era manter a postura e lhe sapecar um grande discurso, não dei trela para minha ignorância.

Dei a bronca, como manda o figurino. E, antes que a Cambaxirra voasse, perguntei sobre a tal recuperação no meio do ano. A danada percebeu meu desconhecimento no assunto e viu ali uma oportunidade de demonstrar que sabia de algo, e eu não. Como um passarinho que inicia o canto, ela estufou o peito e discorreu, lindamente, sobre a tal recuperação contínua. “Danada…”

─ Se consegue decorar a explicação da professora sobre a recuperação, por que diaxo, não consegue se lembrar da matéria, criatura?!

Assunto encerrado, naquele momento. Ela ficou triste. E eu me culpei. Porque a gente se culpa. O dia todo. Se culpa por não ter exigido mais no decorrer do bimestre. Se culpa por saber, no fundo, que cabia a você, responsável pedagógica, observar a deficiência e ajudar a tempo. Se culpa por trabalhar fora. Por não ganhar a grana que acha suficiente. Um verdadeiro flagelo mental que consome e cansa…

Não lembro dela pedir ajuda. “Mas… será que ela teria discernimento para identificar que precisava de ajuda? Reconheceria sua carência? É justo eu jogar no colo dela responsabilidade por isso?” Parei com os questionamentos quando lembrei da nossa diferença de idade.

Tínhamos duas opções: fazer o reforço em casa, de forma paralela, ou na escola, que seria a tal recuperação contínua. 

Sentiu a responsabilidade? Fazer somente o reforço em casa, significava dedicação full time. Era ficar ali, no pé, corrigir exercícios, tomar a matéria… E como se faz isso trabalhando o dia inteiro na rua? Quando não há grana sobrando para arcar com os custos de uma explicadora? (O que é grana sobrando? Alguém me mostra foto disso, há tempos não sei o que é). Como?!…

Primeiro me desesperei. Depois, respirei. E, então, decidi: bora fazer tudo. Recuperação paralela, contínua, tudo que tem direito! Não fazia ideia de como conseguiria apoiá-la, já que não estaria por perto. Mas daria um jeito. O importante era conseguir oferecer segurança de que venceríamos “a recuperação” (parece nome de filme de terror infantil).

Segurança: era o que eu precisava transmitir.

Enfim, ficamos de recuperação em julho.

Sim, no plural. Periquito não ficou de recuperação, mas sentiu as dores da irmã. E aí, para economizar saliva e evitar a fadiga, a gente aproveita para dar a bronca em conjunto.

Eu tinha que trabalhar. Então, montei uma verdadeira Missão Impossível ─ pena que o Tom não estava incluído nessa. Se estivesse, seria de grande ajuda, em vários sentidos se é que me entende, mas, voltando: Cambaxirra e Periquito ficavam com a avó. E, eu, monitorava à distância. O WhatsApp foi super útil. Na hora programada para o estudo eu ligava para ela, fazia chamada de vídeo ou ela me enviava áudios com as dúvidas que tinha. Onde eu estava? No trabalho. Como fazia isso? Fugia para o banheiro. Conseguia responder todas as suas dúvidas? Claro que não. Mas o Google sabia. “Santa Internet Explicadora.”

Aliás, como teria sido mais fácil sobreviver ao período escolar se no meu tempo existisse a internet. Tanto material bom. Tantas aulas para assistir. Essa molecada tem que aprender a tirar bom proveito da internet.

Isso poupou nossas noites. Eu não precisava exigir tanto dela no fim do dia. O que também me aliviava. Foi cansativo, mas valeu muito a pena. Entre uma questão e outra, surgia um assunto e conversávamos. Nos aproximamos mais. Mesmo achando que já éramos bem ligadas, foi possível estreitar ainda mais os laços. Assim como uma massa de pão, sempre é possível sovar mais e mais a relação entre mãe e filhos.

E olha, não foi só nossa relação que saiu ganhando. Eu também pude relembrar temas que havia estudado há poucos anos atrás (ok, ok, muitos anos atrás). Lembram do surto de piolho nos navios?! Muitos portugas pisaram no Brasil, incluindo Dona Carlota. Bafão real! Credo!

No final, Cambaxirra tirou notão, nossa relação virou uma verdadeira Madeleine, de tão gostosa, e eu (apesar do cansaço) agradeci cada minuto usufruído ao lado dela.

Estou tentando pegar leve comigo e com as crianças. Somos humanos. Erramos. E eu não sou onipresente. Enxerguei pequenas falhas minhas e estou tentando melhorar. Eu, Cambaxirra, Periquito e a escola, formamos um time. Com objetivo em comum: enfrentamos juntos as dificuldades do universo escolar, que não são poucas. Mas creio que minha principal tarefa é incutir na cabecinha deles segurança e confiança de que são capazes de aprender tudo. E que se a tarefa estiver difícil, eu posso sentar ao lado deles, e aprender junto.

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