Na minha infância, os momentos de silêncio eram pura raridade. Seja porque a casa era composta de mainha com seus três filhos, cheios de energia, seja pelo fato de que mainha não caminhava pela rotina sem um som aleatório acompanhando-a. De manhã, era um rádio em cima da geladeira, tocando uma MPB antiga ou um sucesso americano que fez parte da trilha sonora de alguma novela. Pela tarde e/ou noite, a estrondosa TV e a sequência impassível de telenovelas, telejornais, filmes, etc. A pausa só era dada no jogo do Bahia ou na missa das 18h que era acompanhada com o ouvido colado e murmúrios de oração pelo esperado gol da vitória ou a proteção da família. Mas havia um momento de silêncio absoluto total dessa mãe/mulher. O silêncio da dor física.
Mainha sempre se gabou de ser uma mulher forte e cheia de saúde, com uma habilidade de unir a farmacêutica tradicional, os chás e suas misturas para se manter sempre impecável. Claro que isso nunca a tornou imune de doenças e dores físicas, mas, acredite, conto nos dedos das mãos as vezes em que a vi sentindo dor. O que me marcou nessas situações foi o fato de que, naquele dia, naquele momento, havia um silêncio absoluto na casa. Ela deitada, porque machucou o joelho ao abrir um côco na escada. Ou super gripada, com tosse forte, sem conseguir ter forças pra se levantar.
O marcante desses eventos era perceber que, em nenhum momento, ela reclamava, se irritava ou bradava sobre a dor que lhe abatia. Mainha era puro silêncio, um silêncio perturbador e absoluto para quem sabia que, para além dos sons que lhe acompanhavam, a própria se encarregava de se integrar a eles pelos barulhos das tarefas de casa, das reclamações por algo que não estivesse certo (ou perfeito) ou pela palavra de comando sobre o que fazer ou não fazer.
Acessei essa memória do absoluto silêncio de mainha ao ler os comentários de uma publicação que falava sobre as dores da menopausa e o tabu por trás do tema, que fazem com que mulheres sofram inúmeros incômodos, algo muito maior do que as “ondas de calorão” que nos acostumamos a ouvir. Os sintomas podem ser fortes: enxaquecas, dores no corpo, crises de ansiedade, insônia, tonturas e muito mais. Passei por inúmeros comentários de mulheres falando o que sentiram/sentem e rapidamente fui até mainha, curiosa pra saber qual idade eu tinha quando ela atravessava essa fase. Não sabia. Eu nunca vi nada. O absoluto silêncio não permitiu que isso acontecesse.
Quando eu tinha uns dez anos de idade, mainha tinha uns 40 e poucos e me recordo de ver embalagens de absorvente na bolsinha dela. Achava bonitas as cores e a textura daquele estranho objeto que só entenderia sua utilidade nos anos seguintes. Esse foi o máximo que acessei da relação com sangue menstrual de mainha. Nunca vi vestígios dele no banheiro, no cesto do lixo ou no corpo dela. Não sei quando ela menstruava, se tinha cólicas e dores na perna como eu tenho. Ou enxaqueca, irritação, e muito sono. O silêncio absoluto de mainha estava agindo em diversos desses momentos. Foi o que ficou comigo. Os dias de silêncio absoluto para não falar do que dói.
Não é à toa que consigo delinear essa relação intrínseca entre dor e silêncio no corpo de mainha. O vazio de expressão do que ela vivia ressoa como a medicina lida com o corpo feminino. A dor feminina ainda é um enorme tabu na prática médica, com estudos revelando como muitos profissionais não consideram o que elas sentem. Uma pesquisa apresentada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences revela:
“Dados mostram que as mulheres esperam mais tempo no hospital para serem atendidas quando sentem dor e têm menor probabilidade de receber analgésicos do que os homens.”
Isso piora quando a dor está relacionada ao processo biológico do sangue menstrual ou do fim da reprodutividade, com a menopausa. As consequências disso levam a diagnósticos tardios de endometriose, e outras doenças que estavam dando sinais da dor e não foram ouvidas.
Mainha escolhe o silêncio para não ser rechaçada por sentir sua dor “natural”. Algo da construção mental dela sabia que a dor feminina se aguenta, não se queixa. Tanto que era clara a diferença dela com as dores físicas do meu irmão e com as minhas e da minha irmã. Um “ai” dele fazia mainha botar as mãos na cabeça sobre o que e como fazer passar a dor do seu menino. As meninas também ocupavam sua preocupação. Mas não tinha o que fazer – na cabeça dela. Aquela dor seria para a vida inteira. Não seria ouvida pela vida inteira. O jeito era se acostumar. O jeito era a gente aprender a dar nosso jeito, sem bradar ou reclamar.
Eu estou construindo uma nova história com meu filho. Ele ouve bem as minhas dores menstruais e se torna parte do processo da melhora. Com dor, a mamãe precisa de mais descanso e ele precisa dar conta das tarefas dele. Com dor, mamãe fica mais na cama e não dá conta de passeios e conversas extensas. A minha dor existe e não se esconde em qualquer tipo de silêncio. Enquanto estabeleço isso, luto pela voz das mulheres na área médica, sendo uma paciente insuportável para qualquer profissional que duvida do que estou sentindo. Além disso, escrevo essas linhas para chamar atenção sobre a dor física feminina. Silêncio, rompido! Dor, ouvida!
Fonte da imagem: https://portal.wemeds.com.br/dor-em-mulheres-e-subestimada/
Por karla Fontoura – @karla.expansiva.dilacerante