Mulheres-mães protagonistas da própria história

Crônica: maternagem revolucionária que só quer sobreviver

Crônica: maternagem revolucionária que só quer sobreviver

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O telefone tocou, era um número comum. Não parecia fraude. Atendi. Era a assistente social do meu trabalho: “Alô, tudo bem?”. Não, não está tudo bem. Digo assim, logo de cara. Ela me informa que se eu não voltar ao trabalho ou protocolizar outro atestado, vou sofrer um PAD (processo administrativo disciplinar). Eu, aos prantos digo que sei disso e que não me agrada estar assim, na ilegalidade. Imediatamente me sinto uma outsider, fugitiva do estado genocida. Esse que nos quer em atividade presencial no meio da pandemia. Os colegas vão ao trabalho sem questionar. Lá eles retiram suas máscaras e conversam, comem, sorriem. Espalham suas gotículas que pra mim são gotas de medo. Eu explico à Assistente social que não consigo voltar presencial. Sou incapaz. Explico que estou cuidando da saúde mental e não me aguento em dizer que minha patologia também é política. Aliás, minha recusa é política. Minha crítica é política. A dor do mundo que sempre me assolou agora vem com uma estaca cronometrada, a cada 30 segundos ela bate no peito. Sinto angústia, temor, às vezes pânico. Não saio na rua. Outro dia gritei com uma mulher no mercado depois de meses sem pisar num. Ela estava sem máscara e eu disse que queria que ela morresse de COVID. Não era bem verdade. Eu nem acredito na causalidade. Aliás, seria bom que ela existisse: quem não se cuida é quem pega e pronto! Mas isso não é verdade. O vírus, assim como a vida, não é justo. Eu explico pra Assistente Social: “tenho um bebê”. Ela me pergunta se é um bebê pequeno. Pra mim sim. Dezoito meses. Livre demanda ainda. Pra mim é minha bebê pequena e eu sou incapaz de deixá-la numa creche e ir lá passar 8 horas do dia com os colegas que sem máscara sorriem, comem e espalham gotículas. Mas, e agora? O que fazer? Passo o dia com as pernas bambas. Era uma sexta e eu tinha uma importante reunião. Abri o e-mail do mestrado e havia um rol de exigências com o prazo pra ontem (expirado) sem que eu pudesse ter acesso. Eram coisas bobas, umas até injustas. Os demais colegas nem estavam sendo cobrados das mesmas coisas. Fico em pânico. Que dia horrível! As pernas bambas, corpo meio trêmulo: vou sofrer um PAD e não vou conseguir concluir esse mestrado. Merda! Percebo que o inferno astral tem a letra do poema que eu vi: “eu vivo no Brasil e isso é muito para um corpo”, sobretudo para alguns corpos, eu constato. Passo o fim de semana angustiada. Juntei documentos, refleti. Sem jeito nem lugar pra refletir. Ela, com 18 meses, quer tetê e atenção o tempo todo. Nem consigo chorar sem que eu me sinta um saco. “Será que ela vai se lembrar de mim assim? Uma mãe que só chora?”. Não, para. Não é verdade. Eu brinco também, cuido bem, disfarço bem. Mas é que, às vezes, não dá. Eu, outsider do governo genocida, que talvez vá sofrer um PAD, e não tem certeza de que o mestrado em direito vai dar certo mesmo depois de ter qualificado (aliás, outro dia difícil na mesma semana), entendo que minha resistência em não aderir aos interesses do mercado agora são muito mais que uma opinião política. Mais que nunca a ideia de um feminismo e uma militância pelos direitos humanos me parece necessária e parte de mim, incluindo da mãe que sou. Entendo que os colegas que sorriem, comem e papeiam sem a observância ao uso de máscaras estão fazendo o que lhes é próprio. Acreditando assim que todo o contexto social e ideológico brasileiro também tem uma intrínseca relação com nossa formação como cidadãos. A luta deveria ser pra que todos esses serviços não essenciais estivessem em teletrabalho durante esse colapso, mas aparentemente, diante da ausência de preocupação de grande parte da população, incluindo os tais colegas, o meu desejo/medo materno de estar em casa com minha bebê de 18 meses enquanto a conta de leitos hospitalares não acompanha o crescimento exponencial de casos graves se mostra como um privilégio. Privilégios sim, numa sociedade que direitos humanos fundamentais são negligenciados, qualquer coisa que seja mais próximo a uma dignidade parece como abuso. É aí que a coisa toda se torna ainda mais complexa. Entendi, depois daquela ligação, que o nome do que estou empreendendo fugitiva do estado genocida é meu ato revolucionário de mãe. Uma maternagem política, preocupada com a própria família também, mas com todo o cenário que se apresenta. Aquele telefone que tocou e eu atendi me veio como uma bomba no colo, dessas que não dá tempo da gente jogar longe antes de explodir. Explodiu em mim o receio dessa pandemia sociológica, essa negligência com mães e crianças, essa ideia tradicional de família onde ironicamente os mais providos de suporte financeiro não “aguentam” mais ficar em casa com seus filhos, e uma parcela (preta) da maternidade mais vulnerável só queria poder fazê-lo. Me pego compreendendo que nesse país ser mãe sem estar no grupo da “classe A” significa primordialmente lutar pra sobreviver. Sempre foi assim, mas agora na pandemia é quase uma obrigação: ficarmos vivos é nossa revolução. Decidi que vou ligar pra Assistente Social que na sua gentileza me passou seu contato e vou dizer: “não tenho condições de retornar, não tenho condições de morrer”.


Autora: Alianna Cardoso Vançan. Mãe, Advogada e Pesquisadora. Mestra e Doutoranda em Filosofia. Mestranda em Direito. – Instagram @aliannacardoso

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